Atenção ! Contém Spoliers!!!
Baby Reindeer é uma minissérie britânica de 7 episódios, disponível na Netflix.[1] A série é uma adaptação do show individual e autobiográfico de Richard Gadd (Donny), criador e estrela da série, baseada em sua vida real, relatando a perseguição sofrida por uma stalker[2] e o abuso sexual sofrido ao redor dos seus vinte anos de idade.
Embora seja uma adaptação autobiográfica, levo em conta a liberdade poética da narrativa, bem como a liberdade de interpretação de cada personagem por seus respectivos atores ou atrizes.
A história é muito complexa, cheia de nuances impactantes e significativas para a compreensão do enredo, tecendo uma trama de significados simbólicos relativos ao trauma do abuso sexual, e ao trauma posteriormente causado ao ser vítima de uma stalker, bem como as consequências de permitir que um stalker se aproxime de nossas vidas, e daqueles com quem nos relacionamos.
Abordarei as defesas psicológicas pertinentes a um indivíduo vítima de abuso, tanto quanto as falhas das defesas, e o trauma transgeracional na família dessa vítima de abuso, os segredos e processos de defesa inconscientes presentes na família, que acabam por permitir que o indivíduo se exponha a novas situações de risco e a relações abusivas, como forma de elaboração posterior de um trauma familiar.
Também abordarei a patologia de Martha, a stalker de Donny, e os demais relacionamentos que se entremeiam durante a trama. As feridas psíquicas de cada personagem se entrelaçam, formando uma rede de relacionamentos que denunciam patologias individuais e sociais que passam desapercebidas em várias de nossas situações sociais.
Sinopse
Donny aspira a ser comediante, enquanto trabalha num pub para se manter, onde conhece uma mulher solitária, chamada Martha (Jessica Faye Gunning). Após lhe oferecer uma bebida grátis (ela não tem nenhum dinheiro, apesar de se apresentar como uma advogada bem-sucedida, cheia de clientes importantes) Martha se transforma numa perseguidora obsessiva. Apesar de descobrir que Martha é uma stalker com diversas passagens pela polícia, Donny vivencia com ambivalência o conflito entre ser empático em relação a ela, ou denunciá-la à polícia. Ao denunciá-la, se reconecta aos traumas do abuso sexual sofrido no passado.
Não existe chá grátis!
Uma simples gentileza, a de oferecer um chá grátis a uma cliente perturbada, inicia um longo processo de stalker entre Martha e Donny. Martha senta-se ao balcão de um bar, onde tudo o que se consome deve ser pago, e ocupa seu lugar sem constrangimento. Donny, sem saber como lidar com uma cliente que afirma não ter dinheiro para nada, fica sem reação, e acaba por lhe oferecer um chá.
Martha continua muito à vontade, relatando como é uma advogada bem-sucedida, com clientes importantes e influentes, mesmo que sua aparência pessoal não condiz com seu relato de vida profissional de sucesso. Ao mesmo tempo, Martha elogia Donny, passa a lhe chamar de Bebê Rena, como um apelido carinhoso, forçando uma situação de intimidade entre eles.
Martha parece ter se sentido vista por ele, mesmo que o chá tenha sido uma gentileza formal, e retribui a atenção recebida da forma que ela considera adequada, enviando muitos e-mails e aparecendo no pub o tempo todo. Mas o ponto principal é que ela vê Donny, ela vê a ferida aberta que sintoniza com a dela, ao afirmar que ele já foi ferido, as feridas traumáticas de ambos se espelham e criam uma conexão patológica entre eles.
O único comportamento prudente de Donny em relação a Martha foi o de lhe oferecer seu e-mail, ao invés do seu número de telefone, como ela havia pedido.
Donny é um indivíduo traumatizado por abuso sexual, e se sente só, envergonhado, e ao perceber que ela reconhece sua ferida, sente-se conectado com ela, como se compartilhassem um segredo, sem saber exatamente de qual segredo se trata.[3]
Pacientes altamente traumatizados, psicóticos, ou borderline[4], podem ser muito sensíveis a detectar as dores dos outros, como se tivessem um radar de identificação através das feridas e traumas, tanto quanto psicopatas e narcisistas costumam ter. Há uma identificação quase que instantânea, porém via feridas, não por afinidades saudáveis.
Martha mente compulsivamente sobre seus sucessos, mas isso não desperta suficientemente o estado de alerta de Donny, que acaba por se deixar entreter pelas visitas constantes que Martha faz ao pub, sempre sem dinheiro, sempre recebendo algo em cortesia. Mesmo quando Martha reage violentamente quando Donny diz que eles não estão numa relação, retirando sua mão da dela num café, ele consegue se afastar devidamente, pois Martha continua seu jogo de sedução indo ao show de comedia dele, dando muitas risadas e puxando o riso do público.
Todo comediante sabe que é preciso ter pelo menos alguém que ria efusivamente no início do show, pois isto aquece o público que se contagia pelo riso solto. Não podemos esquecer que as apresentações de Donny não costumavam agradar ao público, mas Martha alimenta seu desejo de ser engraçado, rindo de tudo que ele faz, fortalecendo sua autoestima. Além disso, ela parece saber lidar bem com a questão do contágio emocional. Dessa forma, ela vai neutralizando o desconforto que causa a ele, lhe proporcionando alguns ganhos secundários através da sua presença.
Donny comete outro erro grave, negando os sinais de que Martha não é quem diz que é, mesmo apesar de todas as incoerências relativas à sua aparência pessoal, seu telefone velho, ou pelo vocabulário cheio de erros ortográficos e de concordância, incompatíveis com a condição de uma advogada bem-sucedida. Ele a segue (aqui ele se comporta como um stalker), e constata que ela vive num apartamento social, fornecido pelo governo, cujo lugar é um caos, bagunçado, cheio de louça suja, etc, indício de problemas psíquicos mais sérios. Martha interpreta esse comportamento como interesse por ela, já que ela mesma, uma stalker experiente, justifica seu comportamento persecutório como interesse afetivo.
Donny comete um erro ainda mais grave ao aceitar a solicitação de amizade que Martha lhe faz no Facebook. Ele faz uma pesquisa sobre Martha, e descobre facilmente que ela é uma stalker reincidente, com passagens pela polícia, e ainda assim, a traz para dentro de sua vida. Isso dá a Martha acesso a suas fotos antigas, e passa a incomodar Keeley, sua ex-namorada. Apesar do namoro ter terminado, ele continua morando na casa da ex-sogra, Liz.
Liz perdeu um filho mais ou menos da mesma idade dele, e Donny passa a ser um tipo de substituto, um consolo para essa mãe enlutada, e uma companhia depois que Keeley vai para a universidade. Ele ocupa o lugar do ninho vazio, mas não porque quer ajudar Liz a lidar com sua perda, mas porque, a meu ver, tem uma tendencia a ultrapassar os limites de uma relação, afinal, quantas pessoas conhecemos que moram com a sogra, após o final de um relacionamento nem tão longo assim?
A sombra de Donny começa a aparecer com mais clareza, justificando seu fascínio por Martha, afinal, porque não oferecer um chá de cortesia no pub em que trabalha, já que ele mesmo mora em condições especiais, como ele mesmo diz, pagando um aluguel com um valor especial para Liz. Não seria essa também uma forma de abuso?
A pessoa que permite que alguém invasivo como Martha entre em sua vida, abre caminho para que o stalker invada e perturbe a vida das pessoas com as quais se relaciona,[5] e não tarda para que Martha agrida Keeley, jogando refrigerante nela (mas poderia ter sido um ácido ou coisa do gênero...) e arranca um chumaço de cabelo de Teri, após um acesso de ciúmes e de raiva.
A persona gentil e sorridente de Martha facilmente se desfaz quando se sente contrariada,[6] ou quando sua persona boazinha é confrontada, como quando Donny a denúncia como sua stalker no show, relatando ainda que ela já havia perseguido a filha cega de um outro homem que ela stalkeava. Dessa vez, é ele que sofre a agressão, tendo vários cortes no rosto depois que ela lhe atira um copo na cara.
Martha representa a ambivalência que deixa Donny sem ação, ela o faz se sentir especial, por toda a atenção e elogios que dedica a ele, mas ocupa toda a sua vida, pois como pensar ou fazer outra coisa, quando seu stalker lhe envia 41.071 e-mails, 350 horas de mensagens de voz, 46 mensagens no Facebook e 106 páginas de cartas. A diferença entre atenção e sufocamento abusivo está no equilíbrio, ou na falta dele... como ignorar alguém que dedica a vida a preencher a sua de atenção, e perceber que isso não é amor, é controle?
A sombra da empatia
A empatia é um comportamento que tende a ser valorizado em nossa sociedade, porém é um comportamento que merece atenção. Indivíduos narcisistas, psicopatas de diferentes níveis, e mesmo neuroses corriqueiras se alimentam da empatia alheia. A empatia torna os indivíduos previsíveis, e muitas vezes nos impede de colocar limites saudáveis nas relações.
Oferecer uma bebida grátis para um cliente do pub pode ser um comportamento empático saudável, mas tornar isso um hábito cotidiano pode alimentar comportamentos neuróticos e abusivos de um modo geral.
Quando a exceção vira regra, e nos vemos na condição de não ter mais escolha, senão a de atender as demandas e expectativas que o outro tem a nosso respeito, viramos reféns não apenas desse outro, mas de nosso próprio comportamento que não se adapta adequadamente à realidade.
Ainda que Donny não tivesse suas feridas psíquicas espelhadas em Martha, seu comportamento excessivamente empático desconsiderou a sombra de Martha, que não era assim tão difícil de ser reconhecida.
A sombra da empatia e da caridade[7] alimentam comportamentos patológicos que podem se tornar perigosos, como no caso de stalker em questão. Nem todo individuo que abusa de nossa empatia é um stalker, narcisista ou Erotomaníaco, mas pode ser um individuo que busca uma simbiose ou uma gama de cuidados que podemos não estar dispostos a oferecer, pelo menos não a longo prazo.
A sombra do humor
A situação de Donny se agrava ainda mais quando ele relata o assédio de Martha para seus colegas do pub, na tentativa de convencê-los a bani-la de lá, porém eles não levam o assédio dela a sério, brincam com a situação de maneira debochada, até que um deles pega o telefone de Donny e responde as mensagens dela, pedindo sexo anal. O convite explicito para o sexo alimenta as fantasias de Martha, que agora tem motivos concretos para acreditar que ele retribui seus sentimentos, incrementando a perseguição.
O assédio tem sido confundido com interesse e assertividade ao longo dos anos, e muitos indivíduos têm dificuldade em perceber os limites entre assédio e interesse contumaz.
Ao longo de séculos mulheres foram treinadas a se fazerem de difíceis, e homens foram treinados a serem insistentes. Por outro lado, um homem que desperta o interesse maciço de uma mulher, deveria fazer sexo com ela, pois não seria macho se deixasse essa oportunidade passar.
Dessa forma, tanto homens quanto mulheres foram incentivados culturalmente a pensar que o assédio inconveniente era sinônimo de amor, desrespeitando seus próprios limites, percepções e até mesmo desconfortos.
Quantos crimes passionais poderiam ser evitados, caso as ameaças ou comportamentos invasivos e abusivos fossem levados a sério?
Embora a Eritomania seja bastante comentada nos grupos de tratamento chamados “Mulheres que Amam Demais”, devemos estar cientes de que a síndrome não é uma raridade entre os homens, e que o diagnóstico e o manejo adequados são essenciais, tendo em vista que esse transtorno tem um alto potencial de violência quando o amor delirante não é correspondido. Os crimes passionais são bastante comuns, infelizmente, mas antes do crime de fato ocorrer, muitas vezes a vida dos indivíduos perseguidos dessa maneira já foi tolhida de maneiras inimagináveis.
Devemos considerar que alguns comportamentos dos personagens, embora bastante inadequados, recebem algum respaldo social, ainda que possam ser inconscientes e os personagens agirem meio que no piloto automático.
Martha não era uma mulher qualquer demonstrando interesse por Donny, era uma mulher visivelmente perturbada, que estava tirando seu sossego, avançando todos os sinais de desrespeito à sua privacidade, mas seus colegas acharam aquilo engraçado.
Donny era um indivíduo aspirava uma carreira de comediante, porém, sem nenhum sucesso, e não é difícil entender porque quando assistimos suas apresentações.
De certa forma, Donny me faz lembrar do Coringa[8], dois aspirantes a comediantes, sem talento para a comedia, cujo grande ato foi exporem a tragedia de suas vidas pessoais em público. Donny relatando o abuso sexual e sua stalker, e o Coringa o abuso moral e a ridicularização sofrida ao vivo, tudo em nome da audiência. Dois personagens que queriam, acima de tudo e de todos, serem vistos e ouvidos.
A comedia implica em senso de humor, inclusive a capacidade de rir de si mesmo. Senso de humor requer leveza, inteligência, rapidez de raciocínio e uma grande capacidade de observação, além de um senso crítico apurado, afinal, a comedia sempre foi uma grande aliada da crítica política e social. No entanto, os dois eram excessivamente ingênuos, treinados a ver aquilo que lhe designavam que deveria estar sendo visto, acreditando mais nas narrativas alheias do que em sua própria percepção da realidade.
Pessoas excessivamente abusadas ou humilhadas, podem ter reações bastante agressivas, afinal, ir a um show de comedia, onde as pessoas querem se divertir, e ouvir um relato de abusos, se caracteriza por um comportamento extremamente agressivo. Ter coragem de enfrentar seus traumas é uma coisa, esfregar isso tudo na cara de pessoas desavisadas, é outra!
Bebê Rena
O apelido supostamente carinho que Martha lhe dá é bastante ambíguo. Se por um lado um bebê rena desperta carinho e cuidados, por outro lado é um mamífero tão vulnerável e dependente de cuidado e proteção quanto qualquer outro. O bebê rena ainda não tem seus chifres desenvolvidos, que se desenvolvem durante a adolescência, alcançando as características adequadas para proteção/agressão apenas na idade adulta, ou seja, após a maturidade sexual. Ao final da série, Martha explica que o bebê rena a que se refere é um animalzinho de pelúcia de sua infância, não ao filhote real. Esse animalzinho de pelúcia era seu único conforto durante as brigas e desarmonias de sua família, ao qual se apegava para se confortar.
Um animal de pelúcia é um objeto inanimado, com o qual se pode fazer qualquer coisa, carregar para todos os lados, e tratar com carinho ou agressividade ao seu bel prazer. Um objeto sem vontade, que existe para satisfazer as necessidades de quem o tenha, em que se pode descarregar as carências de afeto, tanto quanto as frustrações e arroubos de raiva, e é assim que Martha trata Donny, como um objeto, que não tem o direito de se afastar dela, ou de estar disponível quando e como ela quiser.
Donny é o brinquedo que ela não dá nem empresta para mais ninguém, ela é a senhora absoluta dele, e é assim que ela se comporta.
Teri
Donny conhece Teri num site de relacionamentos, onde busca por uma parceira trans. Teri é uma mulher trans, terapeuta, que enfrenta a ambivalência de Donny a seu respeito. Ele precisa usar cocaína para ficar com ela, mas não consegue assumir o relacionamento publicamente, e a abandona sozinha no metrô após uma tentativa dela de se beijarem no trem.
Donny se comporta como Martha, pois mente para Teri sobre sua identidade, diz que trabalha em construção, e mente ainda mais do que Martha, omitindo seu verdadeiro nome.
Mais uma vez, vemos Donny vivendo na casa de outra pessoa de maneira abusiva. Ele passa semanas na casa de Teri se escondendo de Martha, não por causa do relacionamento com Teri. Ele não respeita os sentimentos dela em nenhum momento.
Donny tem dúvidas sobre sua sexualidade, que pode ter sido causada pelo abuso, ou ter inconscientemente, facilitado sua vulnerabilidade. Teri busca um relacionamento maduro, e mesmo atenta à ambivalência de Donny em relação a Martha, ela é paciente em relação a ele, pois talvez esse seja um dos muitos obstáculos que uma mulher trans enfrenta ao tentar encontrar uma relação amorosa.
Teri me parece ser o personagem mais maduro e equilibrado da série, pois é a única cuja vida segue adiante.
No final, Donny stalkeia Teri, ficando de tocaia em frente à casa dela, observando que ela está em outro relacionamento. Essa é a segunda vez que Donny age ele mesmo como stalker. Talvez por isso ele se mostra tão ambivalente em relação ao comportamento de Martha.
Darrien - O Abuso
Ao relatar a perseguição sofrida por Martha na delegacia, Donny se recorda do abuso sofrido por Darrien.
A estória desse abuso é bastante conhecida, assim como alguns dos seus métodos de sedução. Darrien promete ajudar Donny em sua carreira de comediante, o aconselha a se mudar para Londres, o que ele faz, conhece Keeley e vai morar com ela na casa de Liz, então Darrien lhe procura para falar de um projeto piloto para um show de comédia.
Esses encontros são regados a drogas, inclusive com a que ficou popularmente conhecida no Brasil como boa noite cinderela, pois essa droga deixa seus usuários inconscientes, passivos, incapazes de reação de qualquer tipo. A diferença é que geralmente as vítimas são dopadas sem conhecimento, ou à força, mas Donny aceita passivamente o uso de várias drogas simultaneamente.
Observa-se que Donny se submete às vontades de Darry mesmo enquanto ainda estava consciente. O canto da sereia de que seria uma reunião de trabalho não se sustenta quando as pessoas estão em estado alucinógeno, mas ele precisa agradar Donny, pois tem interesse na ajuda da pessoa influente que ele é.
A ambição de Donny, unida a um excesso de confiança em Darrien, o deixam numa situação extrema de vulnerabilidade.
O abuso começa vagarosamente, como se Darrien estivesse testando Donny com preliminares ou atividades sexuais sem a penetração propriamente dita, até que o estupro final acontece de maneira que Donny não consegue mais negar o que estava de fato acontecendo.
Várias pessoas abusadas só percebem o abuso quando há penetração, denotando que a educação sexual peca por não considerar preliminares, sexo oral, masturbação mútua ou observação de atos sexuais como atividade sexual. Considerar que sexo só existe no caso de penetração facilita a alegação de defesa de vários estupradores, a de um famoso jogador de futebol, inclusive.
Uma das dificuldades que as vítimas de abuso encontram ao relatar abusos frequentes é o do porquê elas voltam à situação ou a se aproximar do abusador.
Algumas vítimas não podem se afastar por serem crianças, por estarem sob os cuidados do abusador, por não terem como fugir etc., outras voltam em busca do resgate da ferida, de serem vistas e respeitadas como seres humanos, e não como objetos, uma forma de reparação ao sofrimento vivido.
O abusador não está numa relação de alteridade, onde existe eu-outro, e sim numa relação objetal, onde existe eu-objeto.
Ser colocado na posição de objeto, não ser visto como ser humano, já é algo traumatizante em diversos níveis, em vários tipos de relacionamento.
O indivíduo objetificado busca ter a sua humanidade devolvida por aquele que a usurpou. Quando o indivíduo volta à situação de risco, muitas vezes volta em busca de reparação, não pela continuidade do abuso, mas o abusador entende que ele está querendo mais...
Após o sucesso e o desabafo que se tornou público, Donny volta a procurar Darrien. Ele reencontra o prospecto do show que Darrien supostamente iria produzir, e Darrien propõe que trabalhem juntos, mas afirma que dessa vez iria ser diferente, dizendo que assistiu ao vídeo de Donny.
Sera que Darrien resolve ajudar Donny em sua carreira com medo de uma denúncia formal?
Donny aceita a proposta, mas tem um ataque de pânico ao sair dali. Confrontar o abusador reativa o trauma.
Donny e o pai - Trauma transgeneracional
Martha continua as perseguições a Donny, desta vez assediando seus pais, dizendo que ele havia sofrido um grave acidente e estava no hospital, deixando-os em pânico, também espalha a notícia de que o pai de Donny é um pedófilo, o prejudicando inclusive em seu trabalho. Após a ameaça de que ela contaria a seus pais que ele sofreu o abuso, e de que ele estava incerto sobre sua sexualidade, ele decidiu ir para a Escócia contar tudo aos seus pais antes dela.
Ao falar sobre sua vergonha, de se sentir menos homem por causa do abuso, seu pai lhe pergunta se ele pensaria isso dele, e Donny entende que seu pai havia sido abusado durante a educação católica que havia recebido, e os dois se abraçam.
Abusos podem levar a traumas transgeracionais, que se manifestam ou pelo excesso de cuidado com as crianças, ou dificuldade de expressar afeto de maneira física, como beijos e abraços.
Pessoas que sofreram abuso frequentemente oscilam entre o excesso de contato físico, desrespeitando o limite dos outros, ou se abstendo de contato físico, na tentativa inconsciente de ensinar aos filhos que o contato físico não é seguro, pois não pode identificar claramente as intenções do toque, sejam sexuais ou formas inocentes de afeto, ou na impossibilidade de controlar os avanços sexuais do outro, que pode alegar se sentir provocado.
Alguns exemplos da clínica mostram uma mãe, casada pela segunda vez, que havia sido abusada na infância não permitir que seu filho andasse sem camisa dentro de casa, ou que ele assistisse tv junto com a família, deixando-o recluso no quarto. O atual marido, um homem afetivo e sem tendencias ao abuso ou pedofilia, era visto como uma ameaça, não porque houvesse perigo, mas porque inconscientemente, ela associasse o seu segundo casamento com o segundo casamento da mãe, que a colocou em situação de vulnerabilidade, indefesa aos abusos do padrasto.
Em outro caso, a mãe que havia sido abusada durante anos, era incapaz de manifestar afeto espontaneamente através do toque a seus filhos. Essa paciente tinha vários comportamentos de evitação em relacionamentos afetivos íntimos, que se mostraram originários dos mecanismos de defesa da mãe, que influenciou todos os filhos, em graus e maneiras variadas.
Um rapaz era ambivalente e demasiado agressivo no ambiente de trabalho, oscilando entre comportamentos em que demonstrava querer fazer parte da equipe, ou ser um outsider. Ele havia sido abusado na infância pelo grupo de meninos ao qual ele gostaria de pertencer, e o abuso foi uma negociação para poder fazer parte do grupo. Foi apenas durante o processo que ele percebeu que havia sido abusado, ou seja, convencido a se deixar abusar, quando, na verdade, ele não havia tido escolha. A realidade era diferente da narrativa que ele criou para se proteger do trauma.
Erotomania – feridas de amor e criminalidade
O personagem de Martha se enquadra no diagnóstico da síndrome De Clèrambault,[9][10] mais conhecida como Erotomania.
Erotomania é a crença delirante de que alguém está apaixonado por você. Caracteriza-se pela interpretação equivocada de sinais irrealistas de afeto, que estaria sendo retribuído pelo seu objeto de interesse. O interesse amoroso geralmente se manifesta por um estranho, uma celebridade ou uma pessoa de status social mais elevado, ou como observamos na série, por alguém que lhe dedica alguma atenção. Tais indivíduos podem recorrer à perseguição e ao assédio do indivíduo vítima de seu delírio, podendo levar a implicações legais, relacionamentos tensos e mesmo a criminalidade.
Tais indivíduos tem a convicção delirante de estar sendo amados por alguém, e tendem a interpretar qualquer comportamento do outro como um sinal de interesse ou amor velado.
Tal comportamento é descrito como síndrome de transtorno delirante, inserida na CID-10 como subtipo Transtorno Delirante Persistente e no DSM-IV, como subtipo Erotomania.
Embora a paixão seja um desejo intenso por um interesse amoroso, a erotomania é a crença delirante de que uma pessoa retribui o afeto. Alguém com delírios erotomaniacos acredita que seu objeto de afeto, muitas vezes uma celebridade ou outra pessoa de status, tem sentimentos românticos por ele, mesmo que nunca o tenha conhecido.
No caso de Martha, seu interesse por Donny é despertado pelo fato de que ele a trata de maneira empática. Ele lhe dá atenção, ignora suas mentiras e a acolhe. Os mínimos sinais necessários estão presentes para que seus delírios comecem. Ela acredita que ele fez os avanços iniciais, confundindo gentileza, ou piedade, com interesse amoroso.
Segundo Freud, os comportamentos neuróticos se repetem, assim como para Jung, os complexos são reativados até serem elaborados, ou seja, até que a energia que carregam possa ser liberada para outras atividades psíquicas.
O comportamento de Martha é repetitivo, comete os mesmos erros, já foi presa e abandonada, mas continua agindo da mesma maneira, esperando novos resultados. Donny repete relacionamentos que lhe tragam o conforto e o acolhimento de uma criança, um lar seguro e estável, como a casa de Liz ou de Teri. Lembram como ele estava infeliz e desconcertado enquanto vivia com jovens que não cuidavam nem dele, nem da casa?
Liz vê sua própria filha correndo perigo e sendo invadida por uma stalker, e ainda assim, recebe Donny de volta, como se fosse a volta simbólica do filho morto.
Donny volta a procurar Darrien, uma figura de um homem mais velho que poderia ter lhe ajudado a alavancar a sua carreira, mas que não se identifica como uma figura paterna e protetora, mas sim como um predador, talvez uma repetição de tantas situações que seu pai tenha passado com os padres da escola que frequentou. No entanto, estar frente a frente com seu abusador não o trouxe de volta a uma zona de conforto, pois esta nunca existiu de fato com Darrien, apenas em sua fantasia de ter encontrado uma espécie de “fado padrinho” que magicamente fizesse sua carreira deslanchar.
Mas a identificação com Martha é a mais forte de todas, e fica ainda mais clara na cena final. Ao sair da casa de Darrien, usando o casaco amarelo do filho de Liz, ele para num pub, pede uma bebida, mas persegue que esqueceu a carteira, pois aquele não era o seu casaco.
Onde está sua verdadeira identidade? [13]Simbolicamente falando, nossas roupas e documentos compõem não apenas a nossa persona, mas a nossa identidade individual. Ele não está em posse de nenhum dos dois componentes simbólicos construtores de sua identidade.
Ao vê-lo desconcertado, o barman faz o mesmo que ele tinha feito com Martha, lhe oferece uma bebida grátis, e ele olha para o barman com o mesmo olhar embevecido que Martha olhou para ele da primeira vez.
Não podemos esquecer que ele havia voltado a morar com a ex-sogra, e estava usando o casaco do filho de Liz que havia morrido, o qual ela insistia para que ele usasse. Ele parece ter cedido à fantasia de ocupar o lugar do filho perdido de Liz, ficando sob sua proteção.
Não temos referencias suficientes sobre a história familiar de Donny, além do segredo revelado do abuso sofrido por seu pai, cuja ferida ainda estava presente no casal. A única referência que temos sobre Martha era a lembrança de que o Bebê Rena, seu bichinho de pelúcia era o único conforto que tinha no ambiente familiar toxico em que viveu durante sua infância.
Donny tenta se apoiar em imagens de mulheres fortes e protetoras, como Liz, sua ex-sogra, e Teri.
Liz representaria a tentativa de integrar aspectos positivos da Grande Mãe, mas sua sombra tenta fazê-lo substituir o filho morto, tornando-se uma mãe devoradora.
Teri, uma mulher trans, talvez representasse a união das forças masculinas e femininas num único indivíduo, mas também evocava sua ambiguidade em relação à sua sexualidade.
Teri tenta ocupar o lugar da anima criativa, que o chama para um relacionamento de alteridade em que as diferenças e dificuldades são encaradas, respeitadas e elaboradas, ela foi a voz do bom senso, o alertando sobre os perigos da relação com Martha, o incentivando a dar queixa na polícia e reivindicando que ele tivesse um comportamento maduro em relação a ela.
Keeley e Teri se respeitaram ao se afastar Donny ao perceberem que o relacionamento não era bom para elas, apesar de Keeley não conseguir impedir a ligação dele com sua própria mãe.
No entanto, Martha foi a protagonista na vida de Donny. Tão importante a ponto de ele catalogar suas mensagens, e ouvi-las como se fossem mensagens motivacionais, mesmo que elas não fossem as mais verdadeiras a seu respeito.
Ela foi obrigada a parar de perseguí-lo, mas ele não abandonou os ganhos secundários que obteve com a perseguição dela. Ele escolheu ficar com Martha através das mensagens guardadas como tesouros preciosos, ao mesmo tempo em que voltava a usufruir da proteção de Liz, complementando seu luto não elaborado, substituindo a presença do filho perdido, simbolizado pelo casaco amarelo.
Esse casaco amarelo marca-texto, impossível de não ser notado, resume a situação psíquica simbólica de Donny, o resto é complemento.
Ele entendia que Liz usava sua presença para preencher a ausência e sofrimento causados pela perda do filho, ele entendia que o comportamento de Martha era delirante, mas precisava delas, como o irmão do louco precisava dos ovos...[14]
E nós? De quais ovos precisamos?
[2] Stalker é uma palavra que deriva do inglês, que significa perseguidor. Um stalker é alguém que segue obsessivamente outra pessoa, vigiando suas rotinas, sendo esta perseguição insistente e podendo resultar em ataques ou agressões; o termo deriva para o cyberstalking, ou seja, indivíduos que praticam a perseguição através das redes sociais, é uma forma de violência em que uma pessoa invade completamente a privacidade de outra, seja de maneira pessoal ou através da Internet ou de perseguições em redes sociais.
[3] A questão do segredo e suas implicações é desenvolvida mais profundamente em meu livro A Verdade no processo analítico, Editora Initia Via, 2019.
[4] Para saber mais sobre o contágio psíquico, pacientes borderline e encontros através da psicopatologia, veja a análise do filme Por que você não chora?
[5] Relações abusivas são abordadas na análise do filme O Homem Invisível, também no site.
[6] a mudança súbita de comportamento implica em que um Complexo foi ativado, para saber mais, leia o texto Você tem pavio curto? Também no site.
[7] Discuto essa questão de maneira mais aprofundada no seguinte artigo desse mesmo site: De boas intenções o inferno está cheio – A sombra da bondade e da caridade https://www.solangeschneider.com/de-boas-intencoes-o-inferno-esta-ch
[8] A análise do filme Coringa pode ser lida no meu site: https://www.solangeschneider.com/post/coringa-a-analise-de-uma-sociedade-doente
[9] https://www.scielo.br/j/rprs/a/xJcmrrndSW7S4Lcs4zDm4zK/#:~:text=A%20s%C3%ADndrome%20de%20De%20Cl%C3%A8rambault,alocada%20entre%20os%20transtornos%20delirantes.
[11] De acordo com Freud, o paciente repete em vez de recordar, repete tudo o que já avançou a partir das fontes do reprimido (sombra, para Jung) para sua personalidade manifesta – suas inibições, suas atitudes inúteis e seus traços patológicos de caráter.
[12] Discuto a teoria dos complexos em meu texto: Você Tem Pavio Curto? Entenda isto através da Teoria dos Complexos de Jung
[13] Discuto mais profundamente a questão da identidade e da persona em meu livro Complexo Individual e Cultural – Entre o fascínio e o perigo na busca pela alteridade nas relações interculturais, em vários capitulo, iniciando nas páginas 68,72, 147, 155.
[14] Essa é uma referência a uma piada clássica entre psiquiatras e psicoterapeutas – Um indivíduo vai ao psiquiatra e diz: - Doutor, meu irmão [e louco, ele pensa que [e uma galinha. E o médico diz, porque você não o interna, para ele ser tratado? Ao que o indivíduo responde: - Porque eu preciso dos ovos.
Referências Bibliográficas
1 FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar. Obras Completas. ed. [S.l.]: [s.n.], 1914.
2 FREUD, S. A dinâmica da transferência. Obras Completas. ed. [S.l.]: [s.n.], 1912.
3 JUNG, C. G. The Practice of Psychotherapy. New Jersey: Princeton University Press, v. XIV , 1966.
4 JUNG, C. G. A Natureza da Psique. Petropolis : Vozes, 1984.
5 SCHNEIDER, S. B. A Verdade no processo analítico. 9788595470828. ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2019. 139 p.
6 SCHNEIDER, S. B. Complexo Individual e Cultural - Entre o fascínio e o perigo na busca pela alteridade nas relaçoes interculturais. Curitiba : Appris, 2023.
7 SCHNEIDER, S. B. O Feminino e o Masculino - por meio da cultura, religião, mitologia e contos de fadas. Curitiba, PR: Appris, 2021.
8 JUNG, C. G. Estudos Experimentais. Petrópolis: Vozes, 1997.
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