O Feminino e o Masculino – por meio da cultura, religião, mitologia e contos de fadas
A discussão sobre o que é feminino e o que é masculino tem se acirrado cada vez mais em nossos dias. Quais características são femininas ou masculinas, qual o papel do homem e da mulher na sociedade, nas relações afetivas, nos cargos e profissões que ocupam, quais são seus deveres e obrigações, perante o outro sexo, e perante a cultura, são questões amplamente levantadas nas rodas de conversa coloquiais e nas sessões de psicoterapia.
As questões de gênero, antes ignoradas e marginalizadas, ganharam destaque nas mídias, ganhando visibilidade, mas também exacerbando animosidades.
Estamos vivendo uma revolução cultural em que os papéis antes, tão bem estabelecidos, tornaram-se fluidos, intercambiáveis, trazendo novos conflitos para os relacionamentos que já não possuem mais um modelo bem estruturado, seja para seguir, seja para contestar.
A Psicologia Analítica tem como recurso a análise de mitos, contos de fadas, a religião e a cultura. O conceito de inconsciente ganhou a adição de inconsciente coletivo, onde padrões de comportamento são característicos de vários povos e culturas, independentemente de conhecimento prévio e interação social entre eles, embora ainda haja diferenças significativas entre as culturas oriental e ocidental, certos padrões arquetípicos continuam presentes entre eles.
O Brasil, sendo um país de grande riqueza e variedade cultural, nos traz um símbolo de feminino bastante característico, onde vários aspectos das relações homem-mulher passam por uma transformação bastante interessante. Iansã mostra um aspecto do feminino que integra características masculinas e femininas, ou um resgate de características femininas, que a cultura de dominância patriarcal não permitiria.
A opressão trazida pela escravidão e repressão religiosa vivida pelos povos escravizados e colonizados exacerbou um processo criativo, em que a coesão de diferentes símbolos, maquiados pelos símbolos aceitos pelos povos colonizadores, em sua arrogância soberana, ou por sua sombra também transgressora, e fascinada pelas culturas ainda misteriosas, foi deixando, ou sendo incapaz, de reprimir uma transformação muito mais do religiosa, uma transformação cultural, em que os papeis sociais se intercambiavam, valorizando aspectos do feminino que puderam se sobressair, burlando a repressão patriarcal toxica.
Cassandra representa o feminino sem voz, vilipendiado, rejeitado e submetido a várias formas de abuso. No mito original, temos Cassandra como a profetisa do futuro, que tenta salvar Tróia da invasão, e que por questões políticas e sociais é calada e considerada louca. As Cassandras modernas podem ser representadas, principalmente, pela cientista Kate Dibiasky, do filme Não Olhe para Cima (Netflix), que descobre um meteorito capaz de destruir a Terra, mas que é humilhada, calada, julgada por sua aparência, desrespeitada em todos os sentidos, deixada de lado pela mídia em favor de um cientista homem, e, portanto, mais respeitado. A questão do gênero, ainda hoje, dá mais credibilidade do que a capacidade técnica e cientifica.
Gostamos de criticar outras culturas e religiões, mas quando observamos aspectos da mutilação genital feminina, ainda praticada em vários países, vemos que vivemos uma cultura milenar de manipulação do corpo feminino, seja por questões estéticas (que variam de uma época a outra), seja por tornar a mulher um objeto sexual passivo, em que o prazer é retirado pela mutilação genital, seja pela exacerbação dos caracteres sexuais secundários, como aumento dos seios, das nádegas, lipoaspiração, etc. De qualquer maneira, a objetificação do corpo feminino é uma estratégia de roubar sua alma, evitando a transformação inerente quando se está em um relacionamento afetivo verdadeiro. Neste sentido, perde a mulher, mas também perde o homem, que fica impedido de trilhar seu próprio processo de individuação, pois esta depende de relacionamento, e não de relações abusivas.
É preciso olhar para o masculino ferido em nossa cultura, que vive a ilusão de que sua fantasiosa superioridade é vantajosa. Relações desiguais são desvantajosas para todos, pois ficamos mergulhados na patologia das relações afetivas, e não em seu potencial criativo de transformação.
O patriarcado, tanto quanto o matriarcado, possui tanto aspectos positivos, quanto negativos, e apenas através da integração destes dinamismos poderemos alcançar o dinamismo de alteridade, onde as relações eu-outro possam ser saudáveis e criativas para todos nós.
Apresentação da Autora
Durante os vários anos em C. G. Jung trabalhou no Hospital Burghölzli, atendendo pacientes psiquiátricos, deparou-se com conteúdo de narrativas trazidas por estes pacientes, que não faziam sentido, ou não eram condizentes com o nível educacional e realidade deles. Imagens de delírios e sonhos eram semelhantes aos encontrados em motivos mitológicos e em tratados alquímicos, tanto raros, quanto antigos, fora do alcance de conhecimento daqueles indivíduos.
Esta observação o levou a pesquisar quais seriam os significados dos relatos destes pacientes, desde a mitologia e folclore, tanto locais, quanto internacionais, até textos antigos de culturas distantes, como O I Ching[1], o Mahabharata[2] e o Bhagavad Gita[3], além do estudo comparado das religiões e da literatura.
Marie-Louise Von Franz observou, durante os vários anos de colaboração com Jung, que os mitos e contos de fadas que se perpetuam em nosso imaginário são aqueles que apresentam conteúdos simbólicos arquetípicos, que necessitam ser elaborados e conscientizados por uma determinada cultura ou num determinado momento histórico.
Estudar o folclore de um povo, seus mitos, contos e ritos religiosos é fundamental para a compreensão do indivíduo, pois todo indivíduo é, ao mesmo tempo, parte integrante e representante de uma cultura específica.
Temos a ilusão de que algumas culturas são mais “puras” ou intactas do que outras, no entanto, desde que o mundo é mundo, indivíduos migraram pelas mais diversas razões, entrando em contato com outros povos e culturas. Povos geograficamente isolados, sem contato com nenhum outro povo, nem por isso deixaram de imaginar a existência de outros povos e culturas, ou pelo menos sobre a vida após a morte.
Estas observações clínicas que Jung acumulou durante sua prática, mais os estudos científicos e eruditos, o levou ao conceito de inconsciente coletivo e de arquétipo, em que observou que estes temas eram recorrentes em todas as culturas. Folclores, contos de fadas e mitos, embora contassem estórias específicas, tinham aspectos comuns, como a bruxa, o gigante, a criança divina, o herói, o trickster, e tantos outros, e que estas estórias eram relatavam aspectos da experiencia humana que independiam do tempo e do espaço, mesmo que as variações do herói ou da bruxa existissem, o conceito em si, era similar em todos os povos.
Mitos de criação eram comuns e deram origem a várias religiões, observou que mesmo os povos considerados mais primitivos criavam estes mitos na tentativa de se explicar a origem da vida na Terra, desenvolvendo ritos e mitos para tentar se conectar com uma divindade suprema ou com as divindades de seu panteão religioso.
Os personagens destas estórias mitológicas, ou melhor dizendo, arquetípicas, ilustram diversos modos de comportamento, criação e resolução de conflitos, não são modelos a serem seguidos, mas sim um convite à análise de nossas próprias vidas e comportamentos, muitas vezes padronizados, menos “personalizados” do que a maioria dos objetos de desejo de consumo que temos.
A mitologia greco-romana, uma das mais influentes na cultura ocidental, caracteriza-se por um mito de criação primordial em que Cronos e Reia, filhos de Urano (Céu) e Gaia (Terra), tem um papel relevante na continuação de comportamentos reativos a situações traumáticas e que nos faz refletir inclusive sobre a influência da relação simbólica entre Urano e Gaia exercem sobre nossa atitude de preservação ou de abuso descontrolado da Terra, numa alusão mitológica ao papel de Gaia como a mãe criadora da vida, e Cronos como o pai devorador.
A estória de Cronos nos remete ao complexo de Édipo descrito por Freud, sendo a primeira estória em que um filho tira o poder do pai, primeiro casando-se com sua irmã Reia, característico das narrativas dos reinados antigos. Ali já encontramos a profecia (ou seria um complexo trans-generacional), de que seus filhos iriam lhe retirar o poder, assim como ele próprio havia feito com seu pai. Ao tentar evitar que a profecia se cumprisse, passou a matar e devorar todos os filhos gerados por Reia.
Reia conseguiu salvar um deles, Zeus, escondendo-o da fúria do pai devorador e enganando Cronos, dando-lhe uma pedra embrulhada em um pano que ele comeu sem perceber. Zeus, que havia sido salvo pela mãe, faz com que Cronos vomite seus irmãos (Hades, Hera, Héstia, Poseidon e Deméter), e com a ajuda dos irmãos e passa a governar todos os deuses gregos, tornando-se imortal, poder estendido aos seus irmãos.
Nossa cultura ocidental se desenvolveu sob a influência destes motivos arquetípicos, onde Cronos é a personificação do tempo, e o pai devorador, que não permite que seus filhos sobrevivam e o superem em força, vigor e sabedoria. Reia é a mãe vilipendiada, que vê seus filhos devorados um a um, e que sem condições de enfrentar o esposo, salva um de seus filhos agindo como um trickster.
A estória do desenvolvimento patriarcal de nossa cultura se baseia, desde o início, num pai negativo, devorador, competitivo, que não reconhece a igualdade da irmã/esposa, ou seja, um matriarcado reprimido e subjugado pela força de um masculino devorador. Urano, por sua vez, foi gerado por Gaia, com quem se casou, mas odiava os seus filhos e os prendeu no ventre de Gaia, e é assim que na mitologia grega, os elementos masculinos se apresentam desde o início, matando e devorando o novo, e impedindo que Gaia siga seu curso natural de geradora de novas vidas.
Desde os primórdios de nossa cultura oriunda das civilizações greco-romanas, nos deparamos com o uso e abuso dos poderes matriarcais do feminino, que se opõe, ainda que de maneira velada, contra a perpetuação do poder pelo velho. Parece que o feminino, pelo menos enquanto força instintiva de preservação, anseia pelo novo, enquanto o masculino tenta, desesperadamente manter relações desiguais, em que seu poder e força parecem invencíveis.
Este livro se baseia na ideia de que enquanto não compreendermos que o masculino ferido primordial não for compreendido, e não sofra uma autocrítica, a posição do feminino e do matriarcado positivo continuarão a ter que usar táticas de engano e sedução, tanto na autopreservação, quanto na preservação de seu processo criativo, através da continuidade de sua prole.
[1] Wilhelm, 1982
[2] Um dos maiores épicos clássicos da Índia, considerado o texto sagrado de maior importância no hinduísmo.
[3] Parte do Mahabharata