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De boas intencoes o inferno está cheio - a sombra da bondade e da caridade

A sombra da bondade e da caridade

Um assunto recorrente no processo psicoterapêutico é a investigação da intenção que está por trás da ação. Saber se pessoa que nos feriu queria mesmo ter nos ferido, ou se isto foi um acidente de percurso demanda várias horas de análise, onde o sujeito, muitas vezes, precisa saber se está numa situação de risco real ou potencial. Isto demanda um confronto entre a fantasia e a realidade, a percepção acurada dos fatos, mas principalmente, a análise das emoções que tal situação desencadeou.

É bastante comum a queixa de que as pessoas que iniciam uma psicoterapia piorem após o processo, já que a pessoa tende a sair do piloto automático, ou seja, passa a observar a vida de uma maneira nova, ficando mais atento a coisas que antes passavam desapercebidas.

Pessoas que antes pareciam boas e amigáveis passam a ser evitadas. Outras que pareciam mais frias e distantes parecem ter uma ternura nunca observada, assim as relações vão se transformando e a visão do que é bom ou mal vai se alternando, relativizando, se detalhando em nuances diferenciadas. 

Decepção e surpresa fazem parte do processo, o mundo parece virar de ponta cabeça, e um estado de confusão pode se instalar.

O que fazer quando se percebe que alguém que julgamos só querer nosso bem, está, de fato, nos manipulando? Afinal, a máxima de que “eu só quero o seu bem” é constantemente repetida no âmbito familiar e educacional das crianças e adolescentes, estendendo-se às relações pessoais a até profissionais, de modo geral.

Esta afirmação “eu só quero o seu bem” repetida quase que como um mantra, mais parece uma lavagem cerebral, como se ficássemos condicionados a acreditar que basta dizer que a intenção é boa e todo o resto estaria correto. Porém afirmar que a intenção de alguém é realmente boa implica em analisarmos o resultado da ação, coisa que abusadores e narcisistas costumam contestar. A primeira dica é, se a boa intenção de alguém não pode ser justificada pelo resultado da fala ou ação, temos no mínimo, um complexo afetivo ativado.

Aparentar ser bem-intencionado não significa que o bem-feitor ou bem feitora não tenha segundas ou terceiras intenções, isto seria muita ingenuidade de nossa parte. Porém isto não quer dizer, necessariamente, que a pessoa que tem um ganho secundário não tenha feito algo de bom, de fato, muitas vezes temos uma relação de ganha-ganha onde ninguém sai ferido da situação.

Também não podemos nos esquecer “dos males que vem para o bem”. Muitas vezes são situações claras de abuso, desconforto ou agressividade explicitas que nos fazem tomar atitudes resilientes e buscar outra situação mais saudável, como um novo emprego, uma ruptura em relacionamentos afetivos, profissionais e familiares nocivos, tirando-nos da situação de vítima e colocando-nos como agentes transformadores e responsáveis por nossas próprias vidas. Para isso precisamos nos conscientizar sobre nossa possível necessidade de dependência e assumir a responsabilidade sobre a perpetuação da situação incomoda da qual nos queixamos.

Mas não desanimem da leitura! Pela dificuldade da situação temos uma ideia de quão intenso pode ser um processo analítico, já que esmiuçar, observar e analisar a verdadeira intenção dos outros, e as nossas, não é tarefa simples e muitas vezes nos remete a questionamentos éticos e filosóficos que nunca nos haviam ocorrido anteriormente.

Profissões de ajuda, entidades de caridade e proteção aos mais desvalidos, aos animais, às causas ecológicas e tantas outras que eu não conseguiria citar ao longo deste artigo, estão todas sujeitas a este questionamento. Meu desejo de ajudar o outro pode ser incompatível ao do outro de receber esta ajuda, outras vezes a pessoa ajudada considera que a ajuda recebida se tornou uma obrigação e conta com isto como certo em sua vida, praticamente escravizando seu bem-feitor/a, passando a ser alvo de inveja e ingratidão. Como resolver esta complicada questão? Depende de cada situação específica. 

 

Segundo Freud, toda neurose tem um ganho secundário, ou seja, todo comportamento neurótico só se mantém porque ganhamos alguma coisa com isto, mesmo que este ganho não pareça inteligível. Deste modo, mesmo atos considerados altruístas podem ter sua origem no orgulho e na soberba. Lembro de uma senhora muito caridosa, um verdadeiro exemplo para a comunidade por uma vida dedicada ao trabalho filantrópico, que um dia confessou (sem saber que o estava fazendo) que amava o trabalho filantrópico porque lá ela tinha poder e reconhecimento, ela mandava e era obedecida, obtendo muitos privilégios para sua vida pessoal, elevando sua auto-estima e auto-confiança. No entanto, não podemos desconsiderar o bem que esta senhora proporcionou a milhares de pessoas apenas pelos fato de que ela foi “paga”em forma de reconhecimento, admiração, e até uma certa tolerância pelo seu lado mandão de ser.

Todos nós conhecemos alguém que bate no peito se vangloriando em ser a pessoa mais humilde sobre a face da Terra, tais pessoas costumam fazer muita propaganda da própria humildade. Isto demonstra uma enorme falta de consciência da própria sombra, onde o orgulho e a soberba são tão extremos que o indivíduo precisa se esconder atrás de uma persona que na verdade equivale à sua própria sombra.

Frequentemente vemos crianças sendo tratadas como objetos pelos pais, como se estes existissem para satisfazer seus desejos e vontades. Uma vez uma senhora me disse que como os filhos eram dela, ela poderia castiga-los sempre que tivesse vontade, que eles deveriam servi-la e obedecê-la, já que ela tinha poder de vida e morte sobre eles. Seu comportamento se alternava entre a mãe protetora (contra os outros) e devoradora (ela própria), num exemplo fortíssimo das polaridades do arquétipo da Grande Mãe. Dizer que esta mãe não amava seus filhos seria incorreto, dizer que ela os odiava também seria incorreto, porem ela estava identificada com o arquétipo, acreditando realmente que tinha todo o poder sobre eles, e que as punições eram para o “bem deles”, para que se tornassem “boas pessoas”...

Algumas famílias usam o dinheiro como forma de perpetuação da dependência dos filhos. O que poderia parecer uma ajuda financeira, um incentivo para o inicio de uma nova vida muitas vezes se torna uma moeda de troca afetiva onde os filhos se tornam eternamente devedores dos pais, devendo se submeter às suas exigências.

 

Boas intenções costumam justificar invasões de privacidade. Favores são oferecidos na busca de uma aproximação ou da troca de vantagens. Reciprocidade vira ofensa e o pedido de respeito aos limites pode ser visto como traição.

Em nome do amor e da amizade e dos laços familiares, vale tudo. Que perigo!!!

Infelizmente, até colegas meus, psicoterapeutas renomados caem na armadilha de recomendar que deve-se reconciliar sempre com os membros da família, ignorando o fato de que muitas famílias são extremamente tóxicas, e que não cabe ao terapeuta decidir se o paciente deve se reconciliar ou romper relações com seus familiares, cônjuge ou amigos, mas sim apontar os aspectos sadios ou perversos das relações interpessoais, e ajudar o paciente a entender porque se encontra preso em determinadas relações tóxicas.

Fazer o bem ao próximo pode ser uma satisfação narcisista, em que o maior beneficiário possa ser eu mesmo. Alguns trabalhos voluntários talvez não sejam, de fato, necessários, apenas cumprindo a necessidade do sujeito de se sentir útil. Muitas vezes sua função não é eficaz, nem o voluntário esta qualificado para aquela ação, que acaba se tornando numa oportunidade de encontro social e inserção na sociedade, e se os “necessitados”se beneficiam disto ou não, é uma outra história.

Alguns hospitais tem seus voluntários que visitam os doentes, eles entram nos quartos, fazem perguntas estereotipadas, dizem palavras de apoio também estereotipadas e muitas vezes incongruentes com a realidade do doente, à qual não se dão ao trabalho de conhecer. O mesmo sucede com alguns assistentes sociais e psicólogos hospitalares, que mais parecem movidos pela curiosidade em saber mais sobre o doente e sua família do que ter a vontade legitima de ajudá-los, e em muitas ocasiões julgando e discriminado situações das quais não tem plena conhecimento.

Em tais situações podemos observar que há um complexo afetivo atuante, já que claramente a boa ação não surte o efeito imaginado, concretizando-se de fato uma invasão muitas vezes motivada por uma curiosidade mórbida, verdadeira responsável pelo suposto ato de filantropia. [1]

Aliás, a curiosidade muitas vezes é a mola propulsora de muitas ações ditas caridosas. Será que quando perguntamos a alguém se ele ou ela está bem estamos realmente interessados em seu bem-estar ou apenas queremos aplacar nossa curiosidade?

Este é também um perigo que se corre na psicoterapia. Quais perguntas são realmente necessárias para compreendermos o caso, e quais estão a serviço da curiosidade do terapeuta?[2] Afinal, o cliente tem o direito de guardar seus segredos, até mesmo para o psicólogo/a, já que o tratamento psicoterápico deve respeitar os limites de privacidade do paciente. Antes de fazer uma pergunta a um paciente eu sempre me pergunto qual a função desta pergunta para a compreensão do caso, e muitas vezes digo ao paciente que não precisa responder se não se sentir a vontade, o que causa muita surpresa. Esta surpresa talvez seja um indicio de que estamos todos, de certa forma, habituados a sermos invadidos?

As redes sociais e o compartilhamento de localização dos smart phones trazem outra forma de controle disfarçada de preocupação legítima. Hoje pais, mães, cônjuges, namorados e etc usam a localização compartilhada como forma de controle. Um paciente recebia uma ligação dos pais todas as vezes em que punha os pés fora de casa, perguntando onde estava indo, com quem, porque, etc, isto em se tratando de uma pessoa adulta! Smart phones se tornaram babás eletrônicas para pessoas de todas as idades, cerceando a liberdade de ir e vir das pessoas, pressupondo que as pessoas só agem corretamente sob vigilância.

O direito à privacidade toma o tempo de várias sessões de psicoterapia, onde se discute se se deve ou não dar a senha do celular, laptop e todas as redes sociais ao namorado/a, cônjuge ou o que quer que seja. Discute-se se uma relação de confiança implica em abrir “as senhas” ou abandonar as redes sociais, e todas as formas de controle e manipulação do comportamento, assim como das emoções, pensamentos e fantasias do outro, determinando que todo segredo poderá ser investigado. Tudo em nome do amor (ou da insegurança?).Triste, não?

Um exemplo extremo, porem mais real do que se pode imaginar sobre a excessiva preocupação e cuidados que se tem em relação aos filhos é exibido no seriado  da Netflix, The Black Mirror.  No episódio Arkangel,  Marie perde o rasto de sua filha de três anos, Sara, e decide implantá-la com o sistema Arkangel, permitindo que Marie use um tablet para rastreá-la, monitorar sua saúde e estado emocional e censurar coisas que ela não quer que Sara veja, como sangue. Enquanto Sara cresce, Marie reconhece que o Arkangel está impedindo o crescimento de Sara, mas o dispositivo de rastreamento não pode ser removido; em vez disso, Marie desativa o tablet. Enquanto Sara se torna uma adolescente rebelde, Marie se torna desconfiada dela e reativa o Arkangel, descobrindo que ela está usando drogas com um namorado que Marie não aprova. Quando Sara foge para passar a noite com o namorado contra as ordens de Marie, o Arkangel avisa Marie, que secretamente dá a Sara pílulas anticoncepcionais de emergência, fazendo com que ela vomite na escola. Sara volta para casa e descobre que Marie reativou o Arkangel; Sara espanca Marie com o tablet, ficando inconsciente de quanto dano ela causou devido ao filtro de censura, e foge, com Marie chamando-a em vão. Guardadas as devidas proporções, os recursos de localização de celular de jovens e adultos são usados como forma de controle disfarçado de proteção, onde o direito à privacidade, ou mesmo de se aprender através dos próprios erros, tenta ser retirado dos indivíduos, o que sabemos ser em vão.[3]

As instituições governamentais, as religiões institucionalizadas, as ONGs, enfim, todas as entidades que pregam algum valor de inserção social, publico ou privado, carregam sua sombra. Igrejas gastam mais dinheiro construindo templos do que ajudando aos mais desafortunados. Algumas instituições filantrópicas gastam uma grande parte do dinheiro arrecado para manter sua maquina administrativa. Muitos empregos de bom nível são sustentados com dinheiro destinado à caridade, que acaba recebendo apenas uma pequena porcentagem do valor devido.

Algumas instituições recebem donativos generosos, inclusive em forma de bens materiais bastante valiosos. Varias vezes presenciei objetos doados sendo desviados para benefício próprio das diretorias destas instituições, sob a alegação defensiva de que “pobre não vai saber dar valor pra estas coisas”. Quando perguntados se iriam fazer uma doação em espécie para repor o bem retirado, a defesa psicopáticas atua, afirmando que “trabalha de graça”, portanto tem direito a algumas regalias. No meu entender, quem recebe regalias em forma de bens materiais, esta recebendo pagamento, portanto, o trabalho filantrópico ficaria descaracterizado.

Enfim, os exemplos são infinitos, mas são variações do próprio tema. Muitas causas, ditas nobres, estão a serviço do orgulho, da vaidade e da promoção social e pessoal e profissional de alguns indivíduos, que acreditam, ingenuamente, que esta sombra é imperceptível.

No entanto, é claro que existem pessoas que tem uma vontade desinteressada e legitima de ajudar, mas estas costumam ser discretas, alem de conscientes dos ganhos secundários, reais ou possíveis, que suas ações filantrópicas podem lhes trazer, tendo, com isso, a opção de abrir mão deles ou não.

Entre ser bom e querer parecer bom há uma grande diferença conceitual e filosófica. Desejar ser uma boa pessoa é um sentimento louvável, mas a que preço fazemos isso é algo questionável. A verdadeira bondade ou caridade dependem da integração de nossos próprios aspectos sombrios, enquanto estivermos tentando ser bons negando nosso lado obscuro e projetando-o nos outros, certamente nossas boas ações não surtiram o efeito imaginado, nem no beneficio que poderiam levar ao próximo, nem em nossa consciência tranquila.

 

Referências Bibliográficas

Bertolotto Schneider, S. – A Verdade no processo analítico – Editora Initia Via, 2019

Freud, S. (1917 [1916-17]). Teoria Geral das Neuroses - Conferência XXII - Algumas idéias sobre desenvolvimento e regressão – etiologia. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud.Rio de Janeiro: Imago

                                                  Três Ensaios sobre a teoria da Sexualidade

                                                  Tratado sobre a Histeria

Guggenbuhl-Craig, Adolf –  - O Abuso do Poder na Psicoterapia e na Medicina: Serviço Social,          Sacerdócio E Magistério

Jung, C. G. -  CW3 – The Psychogenesis of Mental Diseases

                       CW7 – Two Essays on Analytical Psychology

                       CW9/1 - A Natureza da Psique.  Petrópolis: Vozes, 2000.

                      CW16 – A Prática da Psicoterapia

SINGER, Thomas, KIMBLES, Samuel. The emerging theory of cultural complexes In Analytical psychology: contemporary perspectives in Jungian analysis. New York/London, Brunner-Routledge,

The Black Mirror -  Episódio 15, 4 temporada, 2017

STEIN, M. Jung – O Mapa da alma – Um Introdução. São Paulo: Cultrix, 2006.

 

[1] Freud, Estudos sobre a Histeria e Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade

[2]  - Guggenbuhl-Craig - O Abuso do Poder na Psicoterapia e na Medicina: Serviço Social, Sacerdócio E Magistério

[3] The Black Mirror, 2017, temporada 4, episódio 15

Texto originalmente publicado em ingles, para o site Therapyroute.com 

https://www.therapyroute.com/article/the-road-to-hell-is-full-of-good-intentions-the-shadow-of-kindness-and-charity-by-solange-bertolotto-schneider 

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