Psicologia dos Afogados
O título desde artigo pode parecer algo estranho, mas creio que este seja um fenômeno muito fácil de se reconhecer.
Nadei por muitos anos, e parte do aprendizado deste esporte implicou em técnicas de salvamento[1]. Uma das regras que os nadadores deveriam obedecer era nunca nadarmos sozinhos, ou seja, ao nadarmos numa piscina profunda, onde não alcançássemos o fundo com facilidade, ou ao nadar em áreas livres, em lagos, rios ou piscinas, deveríamos nos certificar de que alguém poderia solicitar ou providenciar ajuda, caso necessitássemos.
Esta primeira lição, de cunho prático, implica em manter a segurança do nadador, que poderia ser colocada em risco por sua hibris[2], ou inflação egóica[3], passível de ocorrer em cada um de nós sempre que adquirimos uma nova capacidade ou talento.
Cada nadador era alertado de que, mesmo sendo um exímio atleta, caso passasse mal dentro da água, fosse por uma simples câimbra, fosse por um problema mais sério, como um mal súbito, este atleta, profissional ou amador, seria socorrido a tempo.
Saber-se passível de socorro nos deixa alertas a possíveis perigos, e conscientes de nossas fragilidades atuais, possíveis ou esporádicas.
Ao nos sentirmos inaptos a sair da água, deveríamos manter a calma e nos mantermos boiando esperando pela ajuda. Claro que esta é a parte mais difícil, quem já teve uma câimbra dentro da água sabe que a dor não é nada simples, e que pode ser muito difícil alcançar a borda de uma grande piscina, ou alcançar a praia, coisa que faríamos em segundos quando em nossa condição ideal.
A humildade em reconhecer que precisamos de ajuda é uma outra lição de grande valia, confiar que a ajuda a qual necessitamos virá é outra não menos importante.
A segunda parte do treinamento implica em lições de salvamento. O primeiro impulso de todos ao serem perguntados sobre o que fariam, caso vissem alguém se afogando, foi de se jogarem na água e efetuarem o salvamento, o que se mostrou como a última das alternativas a ser considerada, porém ainda com algumas regras que determinariam a segurança de todos e o sucesso do salvamento.
Acontece que quando alguém está se afogando, a tendencia é usar a pessoa que vem em seu socorro como tabua de salvação, se apoiando no salva-vidas, fazendo-o submergir, com grande chance de que ambos venham a se afogar, pois uma luta involuntária acaba sendo travada, colocando a vida tanto do afogado quanto do salva-vidas em risco.
Neste caso, pular na água para efetuar o salvamento, que parecia a atitude mais correta e heroica, pelo menos à primeira vista, era quase uma missão suicida.
Uma das primeiras opções viáveis seria jogar uma boia ou prancha para que o afogado tivesse um apoio, até que fosse se aproximar para efetuar o resgate propriamente dito. Outra seria estender alguma haste ou viga e puxar o afogado para perto da borda, facilitando o salvamento, uma outra recomendação ainda seria de que não deveríamos estar de pé na borda, e sim deitados próximos à borda ao puxarmos o afogado para um local seguro, pois caso contrário poderíamos perder o equilíbrio e cairmos na água, correndo o risco de sermos usados como tabua de salvação e colocarmos a vida do afogado e a nossa própria em risco.
Acho a analogia da psicologia dos afogados muito útil ao compararmos não apenas ao processo terapêutico, mas também a todo ato de ajuda ao próximo, seja por meio da caridade social ou religiosa.
Ao ajudarmos alguém devemos ser eficientes e manter nossa própria segurança e integridade, para isso, é preciso conhecimento e planejamento estratégico, que na situação específica do afogamento, algumas pessoas já adquiriram ao longo de suas vidas, mas em tantas outras situações de ajuda, podemos contar apenas com o senso comum. Um antigo estudo do qual não me recordo a fonte, demonstrava que os ditos heróis do dia a dia mostravam ser pessoas que numa fração de segundo avaliaram a situação de risco, calculando suas chances de êxito antes de tomar uma decisão, tornando o salvamento eficaz e mais seguro do que pareceria aos olhos de outras pessoas, ou seja, ao invés de impulsivos, tinham o raciocínio extremamente rápido na avaliação de riscos e das próprias capacidades.
Eu diria que esta seria uma capacidade de empatia saudável e criativa, afinal o salvamento seria efetuado, com nenhum ou com o mínimo prejuízo ao salva-vidas, claro considerando-se a gravidade e as circunstâncias, afinal, algumas feridas e desconfortos são infinitamente menores do que a morte de alguém.
Algo interessante para fazermos uma analogia, seria de que ficarmos em pé nos colocaria em risco de cairmos na água e nos afogarmos também. Fazendo uma analogia com processo psicoterapêutico e outras profissões de ajuda, devemos nos colocar o mais próximo possível do nível da pessoa que queremos ajudar, ou seja, não olhar a pessoa ajuda de cima para baixo, mas sim em posição de igualdade.
Os limites da ajuda e sua eficácia sempre foram objeto de discussão nas profissões de ajuda[4], discussão esta que se agravou enormemente devido à pandemia do Covid-19, onde a quantidade de “afogados” aumentou de maneira descontrolada, tanto em questões de saúde e seus cuidados, como em questões de sobrevivência material causada pelo desemprego, que tem atingido principalmente profissionais menos qualificados, ou subempregados.
Estamos vivendo um dilema ético sem medida, de um lado querendo fazer a nossa parte, dar o nosso melhor, de outro lado, correndo o risco de nos sobrecarregarmos de uma maneira que pode nos colocar em risco. Qual o limite da ajuda que podemos e devemos oferecer? Como lidar com o stress de uma sociedade em colapso?
Não creio ter uma solução definitiva, mas sim levantar a reflexão sobre certas condutas possíveis, pois se tem algo que nós, psicoterapeutas fazemos o tempo todo, é lidar com essa psicologia do afogado.
Tantas vezes vemos nossos pacientes se afogando em problemas, e temos que conter nossa ansiedade, afinal, não podemos assumir a vida e as escolhas de outra pessoa além de nós mesmos, ficamos buscando o equilíbrio entre estar próximos o bastante para que o paciente não se afogue sozinho em seus problemas, mas também temos que guardar uma certa distância para que não percamos a visão da água toda, ou dos processos inconscientes que estão presentes em todas as relações humanas.
Em que água nosso paciente se afoga? Clara ou escura? Funda ou rasa? Calma ou revolta?
Se usarmos as técnicas de salvamento aprendidas na natação, sabemos que precisamos ter uma visão não somente da área de risco, como dos recursos de salvamento. Quais recursos eu possuo que são uteis para esta situação? Qual a distância segura para ambos? Afinal, se eu me afogo, não tiro ninguém da água.
Ou seja, se me envolvo pessoalmente com as queixas do paciente, perco a amplitude da visão que um certo distanciamento me proporciona, afinal, o processo terapêutico implica numa dança, em que alternamos aproximação e um certo distanciamento, como quando nadamos, mergulhamos, mas temos que tirar a cabeça fora da agua para respirarmos de quando em quando.
A técnica mais eficaz para tirar um afogado da agua, quando o último recurso disponível é se jogar na
agua e nadar, devemos circundar o afogado, nos aproximando pelas costas, ou seja, evitar as defesas desgovernadas que possam impossibilitar o salvamento do afogado, que por instinto, vai nos empurrar para baixo. Devemos passar o braço abaixo do queixo na direção de uma das axilas, assim mantemos o afogado com a cabeça fora da agua, apto a respirar, e com o sentimento de segurança de quem esta acolhido em braços fortes, assim, podemos ainda usar o outro braço e as pernas para levar o afogado para aguas mais rasas, ou esperar ajuda e colaboração de outra pessoa, que no caso do afogado pode ser mais alguém da equipe de salvamento, ou no caso de um paciente pode ser a medicação, a rede de apoio familiar ou de algum ramo da sociedade em que este esteja inserido, como grupos religiosos, alcoólicos ou narcóticos anônimos ou outros.
A habilidade em detectar qual a ajuda mais eficaz e segura faz parte do processo psicoterápico, em que lidamos com mecanismos de defesa tanto neuróticos, como psicóticos, narcisistas ou psicopáticos. Precisamos identificá-los para poder elaborar a melhor tática de tratamento.
O mesmo procedimento, ou tática, pode ser pensado nos grupos assistenciais que se multiplicaram durante a pandemia. Manter um certo distanciamento, a fim de tomar decisões mais equilibradas ao invés de sucumbir ao nobre desejo de ajudar pode tornar a ajuda mais eficaz e duradoura.
Reconhecer nossa limitada capacidade de apoio pode nos ajudar a nos cercar de uma rede de apoio maior e mais abrangente, e com isso, também mais eficaz.
Planejar uma ajuda que vá além da emergencial, pode, por exemplo, transformar uma ajuda eventual em corriqueira, respeitando o tempo em que o individuo necessita para se reerguer, seja emocional ou financeiramente.
Claro que quem tem fome tem pressa, tanto quanto quem se afoga precisa respirar, mas precisamos evitar de sermos devorados ou afogados pelas necessidades alheias, assim como precisamos respeitar os limites de cada um em nos oferecer a ajuda possível e viável a cada momento e necessidade, afinal, o salvamento, assim como os primeiros socorros, são apenas a ponta do iceberg.
Neste momento de pandemia, cidadãos responsáveis estão cobrindo as muitas ausências do Estado, mas um único individuo faz menos do que uma dupla ou um grupo de pessoas.
Os salvamentos mais tranquilos precisam de técnica, equipamento e rede de apoio, isto vale para a psicoterapia, para as situações de guerra, bem como a de calamidade que esta pandemia nos causou.
Centros de saúde, hospitais e entidades filantrópicas estão se afogando frente a uma demanda sobre-humana de trabalho. Profissionais estão atuando além do limite de suas capacidades físicas e mentais, colocando a própria saúde em risco em muitas ocasiões. Muitas vezes o chamado do herói pode nos levar a comportamentos semelhantes ao suicida,
Entidades filantrópicas tentam desesperadamente cobrir o buraco causado pela falta de assistência governamental adequado, e mesmo as forças governamentais que tentam fazer o seu melhor não estão tendo um desempenho suficientemente adequado para atender esta demanda extraordinária de socorro e de cuidados a esta população que tem sido massacrada pela pandemia.
A frustração do herói em não dar conta de sua missão é terrível.
Vemos vários profissionais das profissões de ajuda e de entidades governamentais entrando em colapso, tentando amenizar os estragos causados pela situação da pandemia, observando sem entender os indivíduos que se jogam numa piscina funda sem saber nadar, muitas vezes bêbados, inebriados pela sede de viver, flertando com a morte, tentando levar uma “vida normal”, numa situação totalmente anormal.
Sim, estamos vivendo uma situação anormal, atípica, extraordinária, qua em grande parte poderia ser
evitada pela presença de um Estado responsável e por cidadãos conscienciosos.
O princípio do prazer, tão forte nas culturas de predominância matriarcal como a nossa, se confronta com o instinto de morte. Ter uma vida normal, feliz e prazerosa a qualquer custo, não deixa de se equiparar a uma tendencia suicida, quer estejamos conscientes disso ou não. A ânsia de aproveitar a vida a qualquer custo se assemelha ao desejo de mergulhar em aguas revoltas estando embriagado.
O impulso de vida e de prazer também pode ter o mesmo efeito de uma droga, em que se busca a experiencia inebriante cada vez mais intensa, e consequentemente, mais arriscada.
Correr riscos é um atributo do arquétipo do herói, mas também do Puer[5], pois as consequências sempre vêm ao nosso encontro.
Estaríamos vivendo uma sociedade em que há prevalência de Puer, ou seja, de comportamentos pueris, irresponsáveis, em busca da eterna e inalcançável leveza do ser?
A ousadia do ato heroico implica em avaliar os riscos, mas quando o inimigo é um vírus invisível e pouco conhecido, obedecer aos impulsos do prazer é o mesmo que se jogar num abismo às cegas, pular de asa delta sem guia e sem experiência pela primeira vez, ou nadar em águas traiçoeiras, sem saber nadar.
Algumas pessoas passam pela vida como se fossem eternos afogados, contando que algum herói venha resgatá-los.
Tais indivíduos seguem seus impulsos e necessidades, contando com a sorte ou a providência divina ou das pessoas ao seu redor, e isto é muito mais comum do que se imagina.
Alguns indivíduos realmente não têm recursos para sobreviver sem ajuda material, dadas as condições desiguais que se perpetuam em nossa sociedade, que dependem de investimentos governamentais em saúde, moradia, educação e saneamento básico. Ainda assim, tais condições prescindem de algumas décadas para se estabilizar após sua implementação, no entanto, há indivíduos que tiveram acesso a tudo isso e que continuam se comportando como afogados.
Estes afogados simbólicos alternam a vida entre pedidos de socorro, sendo resgatados, e voltando à situação de salvamento inúmeras vezes, repetindo um padrão interminável. Muitos deles simulam acabam um afogamento para tirar vantagem daqueles que se afogam numa empatia patológica, daqueles que compulsivamente se colocam em posição de ajudar o outro, muitas vezes estando ele próprio em frangalhos.
Muitos destes afogados simbólicos apresentam outras psicopatologias, como defesas psicopáticas ou feridas narcisistas. Muitos apresentam feridas precoces no desenvolvimento do dinamismo matriarcal, fixados numa fase de desenvolvimento prévio ao dinamismo de alteridade[6], onde os dinamismos matriarcal e patriarcal dialogam, usando defensivamente mecanismos que impedem seu desenvolvimento como adultos capazes e responsáveis.
Estas defesas patológicas não identificadas, ou identificadas erroneamente, podem constelar o arquétipo do herói em muitos de nós, uma necessidade genuína de ajudar o próximo, característica de indivíduos maduros e capazes.
No entanto, a fantasia ingênua de que basta um gesto heroico direcionado a estes supostos afogados, para que tudo se resolva, mostra-se ineficaz em muitas ocasiões, desencadeando relações de dependência, já que estes afogados simbólicos se comportam como vampiros emocionais e materiais, sugando a energia e esforços de quem os socorre, usando-os como pontes de acesso, afogando seus salva-vidas, no sentido simbólico de exaurir os recursos de quem os socorre, sempre querendo mais e mais.
Por isso que as profissões de ajuda, e entidades filantrópicas em geral precisam obedecer a algumas regras de salvamento, para que não sejam levadas ao fundo do poço, algumas destas posturas podem ser confundidas com a burocracia e frieza das organizações governamentais, cujos métodos podem ser questionados, mas a ausência deles pode ser caótica.
São elas:
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Observar e compreender o pedido de ajuda, tanto a nível pessoal quanto coletivo
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Reconhecer a própria capacidade e limites em relação à esta demanda
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Planejar a ajuda
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Utilizar-se de recursos intermediários, como leis, contratos, códigos de ética, ou seja, equivalentes às boias e hastes que conduzem o afogado à borda, ou prover os afogados com estes recursos
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Evitar confronto direto, ou seja, no salvamento de um afogado, circundamos a vítima de afogamento, o seguramos pelas costas e criamos uma certa imobilização a fim de conduzir o salvamento de uma maneira segura a ambos, descartando este recurso quando o afogado estiver em terra firme, ou em contato com a realidade. Equivalente a isto, quando lidamos com defesas psicológicas precisamos ficar atentos a quais e em que momento estas podem ser confrontadas, já que num primeiro momento o ideal seria circum-ambular[7] em torno delas, até que o confronto propriamente dito possa ser efetuado, caso seja de fato necessário.
Estas orientações tendem a evitar a formação de sombra no relacionamento entre quem ajuda e quem é ajudado, pois as relações de ajuda, por si só, podem desencadear inveja e ressentimento, não apenas gratidão e admiração, como normalmente se imagina que aconteça.
As relações de ajuda colocam o ajudado numa situação de possível inferioridade, e estas orientações podem ser uma importante ferramenta para que isto não ocorra, já que se o indivíduo que recebeu qualquer tipo de ajuda se sentir humilhado, pois vivencias de humilhação são sombrias por si só.
De qualquer maneira, algumas máximas do cristianismo são aplicáveis ao saber psicológico, pois quem ajuda está numa situação privilegiada que não permite julgar quem está sendo ajudado, não deve esperar por gratidão ou reconhecimento. Afinal, o melhor reconhecimento de que uma ajuda foi eficaz, é quando esta não é mais necessária e nossa presença torna-se dispensável.
Este deveria ser o objetivo da psicoterapia, tornar-se dispensável após um certo período, cumprindo assim o seu papel de agente transformador.
Referências Bibliográficas
Byington, Carlos Amadeu Bueno – Inveja Criativa
A Psicologia Simbólica Junguiana
Campbell, Joseph – O Herói de Mil Faces, Cultrix/Pensamento
Edinger, Edward – Ego e Arquétipo
Guggenbuhl-Craig, Adolf – Eros on Crutches – On the Nature of the Psychopath
O Abuso do Poder na Psicoterapia e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério.
Freud, Sigmund - Além do Princípio do Prazer, 1920
Eros e Thanatos
Hillman, James - Suicidio e Alma
Jung, Carl Gustav – Os Arquétipos do Inconsciente Coletivo
A Natureza da Psique
O Desenvolvimento da Personalidade
Von Franz, Marie Louise – The Problem of the Puer Aeternus
Zweig, Connie and Abrams, Jeremiah – Ao Encontro da Sombra – O Potencial Oculto da Natureza Humana
Manual Técnico de Salvamento Aquático – Corpo de Bombeiros Militar do Espírito Santo
[1] Manual Técnico de Salvamento Aquático – Corpo de Bombeiros Militar do Espírito Santo
[2] Hybris, na mitologia grega, personifica a insolência, violência, orgulho imprudente, arrogância e qualquer comportamento ultrajante no geral. Tal conceito implica em tudo que passa da medida, ou a uma confiança excessiva.
[3] Identificação do ego com o Self, em que o ego se atribui qualidades mais amplas, equivalentes ao arquétipo do Self. Vide Edinger.
[4] Guggenbhul-Craig, Adolf
[5] Puer Aeternus – pessoa adulta cuja vida emocional permaneceu no nível adolescente. Uma de suas características é a cobiça pela liberdade, independência, oposição aos limites e intolerância a restrições
[6] Byington, vide bibliografia.
[7] Circumabulatio – refere-se à ideia ou processo de se olhar ou de se aproximar de um problema por diferentes ângulos, numa referencia aos rituais sagrados onde uma imagem é circundada e tratada com respeito e reverencia.
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