FRANKENSTEIN – Análise Psicológica do Filme e do Complexo Patriarcal
- Solange Bertolotto Schneider
- 27 de nov.
- 17 min de leitura
Atualizado: há 4 dias

Frankenstein - Análise Psicológica do Filme e do Complexo Patriarcal
Direção de Guillermo del Toro
Atenção: Contem spoilers. Uma sinopse pode ser encontrada na Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Frankenstein_(2025) , e o filme pode ser assistido na NETFLIX.
Nessa análise psicológica do filme Frankenstein me atenho à versão de Guillermo del Toro. Comparo essa moderna versão de Frankenstein com outras duas versões bastante populares, Edward Mãos de Tesoura e Pobres Criaturas. Embora Edward Mãos de Tesoura tenha um formato mais próximo ao dos contos de fadas, Edward e a Criatura foram criados em laboratório, a partir de fragmentos de corpos humanos, e Bella é ressuscitada tendo seu cérebro de mulher adulta substituído pelo cérebro do bebe que esperava quando morreu. São três corpos adultos que ganham vida por meios "científicos" dentro da ficção que imita a criação da vida humana na Terra, assunto que fascina a humanidade a centenas de anos. Criadores e suas respectivas criações apresentam semelhanças e diferenças, que serão comparadas e analisadas a partir da narrativa principal desse estudo, o Frankenstein de Guillermo del Toro.
A versão atual de Frankenstein, escrita e dirigida por Guillermo del Toro é baseada no romance Frankenstein; ou, O Prometeu Moderno (1818), da escritora britânica Mary Shelley.
Victor Frankenstein (Oscar Isaac) é um cientista e cirurgião, brilhante e egocêntrico. Obcecado pela imortalidade, cria um monstro (Jacob Elordi) a partir de pedaços de cadáveres humanos.
Essa versão de del Toro trata do dilema da humanidade em relação aos limites éticos da ciência, trazendo um questionamento profundo sobre a responsabilidade do criador em relação à sua criatura, semelhante àquela em relação à responsabilidade dos pais em relação aos filhos.
Del Toro dá voz à criatura que não recebe sequer um nome, cobrando a responsabilidade que o criador tem em relação à sua criatura.
O Capitão Anderson acolhe a ambos, primeiro escutando a versão de Victor, depois acolhendo a Criatura, ouvindo atentamente sua versão de sua própria história, proporcionando uma catarse terapêutica, onde a Criatura adquire status de sujeito, e não mais de objeto.
Sem a intermediação proporcionada pelo olhar e ouvidos atentos de Anderson, talvez Victor e a Criatura jamais tivessem chegado ao momento de confronto criativo a que chegaram, antes carregado pela agressividade de Victor, que desencadeava uma reação também agressiva da Criatura.
Victor sofria de um complexo patriarcal negativo originado pelo tratamento cruel que seu pai dedicava a ele, e depois ao seu irmão mais novo William. Ao mesmo tempo, sua ligação excessivamente próxima com a mãe não permitiu que elaborasse o luto pela sua morte, culpando o pai, um dos melhores médicos da época, de não ter conseguido vencer a morte.
Quando seu pai afirma que ninguém pode vencer a morte, Victor afirma que sim, que ele será capaz disso, desafiando, ao mesmo tempo, seu criador humano e o Criador Divino.
Victor fica obcecado por vencer a morte, inflado, egocêntrico e desafiador, como um garotinho rebelde que precisa confrontar as autoridades de seu campo, da maneira que não foi capaz de confrontar seu próprio pai.
Prometeu e seu irmão, Epimeteu, foram encarregados de criar os homens e os animais. Enquanto Epimeteu os criava, Prometeu supervisionava. No entanto, Epimeteu gastou todos os recursos e atributos especiais nos animais, e recorre a seu irmão, Prometeu para ajudá-lo. Então Prometeu roubou o fogo dos deuses e o deu aos homens, para assegurar que tivessem superioridade sobre os animais. O fogo era exclusivo dos deuses, e como castigo, Zeus ordenou que Hefesto o acorrentasse no cume do monte Cáucaso, onde todos os dias uma águia (ou abutre) dilacerava o seu fígado, que todos os dias se regenerava, um castigo que deveria durar 30.000 anos.
Victor desafia os deuses e leis da natureza ao criar um homem feito a partir de pedaços de cadáveres de soldados da guerra da Crimeia. Ele escolhe os soldados por serem homens saudáveis que morreram em combate, não por doença pré-existente, o que contrariava seu desejo de imortalidade. Corpos feridos e mutilados foram sendo cortados e adaptados, na tentativa de criar a Criatura mais perfeita que estivesse a seu alcance.
Durante a construção de seu laboratório, financiado por Henrich Harlander (Christoph Waltz) pede a William (Feliz Kammerer) para cuidar de tudo, pois só confia nele, mas na verdade, ele quer se aproximar da noiva do irmão, Elizabeth (Mia Goth) com o apoio de Harlander, que deseja ter seu cérebro transplantado no corpo da criatura, pois está morrendo de sífilis.
Victor é capaz de qualquer coisa para conseguir o que quer. Ele chega a acreditar que está conseguindo seduzir Elisabeth, mas ela consegue ver exatamente como ele é, embora se interesse por seus experimentos científicos e ciências em geral, especialmente os insetos e a pureza da vida instintiva. Elisabeth é, ao mesmo tempo, inteligente, sensível, intuitiva, perspicaz, e busca algo que vá além do egoísmo de prepotência de Victor.
A Criatura ganha vida, se comporta de maneira natural e instintiva, quase como um bebe, mas enorme como um grande adulto. Victor projeta sua própria agressividade nele, o maltrata como o pai fazia com ele, e o acorrenta. Elisabeth ve a criatura como ele é, ve beleza e inocência nele, formando uma conexão incompreensível pra Victor.
Victor não havia pensado o que faria, ou como lidaria com esse ser que acabara de criar, se ve confuso, e se dá conta que não havia pensado nas responsabilidades inerentes a um criador. Como um pai egoísta e imaturo que era, rejeita sua criação, inventa que a morte de Harlander foi causada pela Criatura, mais uma vez se eximindo de suas responsabilidades. Ele quer receber e merecer tudo, sem nunca oferecer algo em troca. Ele anseia pelo amor incondicional que recebia da mãe, que foi negado pelo pai, e continua a agir por um impulso obstinado de fazer com que tudo seja do seu jeito.
Por não saber lidar e acolher as demandas da responsabilidade sobre o ser que havia criado, nem pelo acidente que levou Harlander à morte, decide por fogo em tudo, destruindo a Criatura. No entanto, ao tentar destruir a Criatura, começa a ficar semelhante a ele. Perde uma perna e passa a usar uma perna artificial. Tal qual o ocorrido com Prometeu, a águia começa a comer seu fígado. No entanto, não é o corpo de Victor que se regenera, é o corpo da Criatura, que se descobre imortal. Morre, mas sempre retorna da morte, como os corpos destroçados que o formaram.
Victor anseia por vencer a morte, mas traz destruição por onde passa. Sua falta de empatia, de compaixão, seu egoísmo norteiam sua impulsividade e incapacidade de prever as consequências de seus atos. Ele vive sob as defesas narcisistas que permeiam seu complexo patriarcal negativo, carregado de ira, frustração e pela busca de reconhecimento, que nunca recebeu de seu pai, e que talvez tenha pensado estar recebendo de Harlander. No entanto, Harlander buscava uma solução para seu próprio medo da morte, e Victor era apenas um meio.
A relação entre Victor e Harlander, ou seja, entre a ciência e o patrocínio financeiro reflete o interesse do capital em controlar as descobertas cientificas e usá-las em proveito próprio, seja pessoal ou financeiro, característico da relação entre pesquisa médico-cientifica e tecnológica, e a indústria farmacêutica, de tecnologia ou de armamentos. Ideias criativas, servindo a diferentes propósitos.
Harlander não compreendia que o ideal de Victor era criar um ser perfeito, que vencesse a morte, e que seu corpo tomado pela sífilis seria capaz de destruir sua criação.
Harlander morre junto com a fantasia de Victor de ter encontrado uma figura masculina que lhe oferecesse o amor e apoio incondicionais que buscara encontrar em seu pai, mas que só havia experimentado na relação com sua mãe.
A imagem da Criatura, ainda inanimada, presa a uma haste que lembra a imagem de Cristo crucificado, à espera do raio que lhe dará a vida, nos remete ao símbolo da morte e renascimento de Cristo, o redentor dos pecados da humanidade, numa correlação à redenção dos pecados de Victor.

Em frente à Criatura “crucificada” há uma enorme imagem da Medusa[1], símbolo do feminino ferido, que petrifica, paralisa a todos que olham para ela. O filme retrata a supremacia do patriarcado sobre o matriarcado, mas principalmente sobre a alteridade, pois quando o feminino é reprimido e violado, paralisa os homens, petrificando seus sentimentos e emoções. Sentimentos petrificados tornam as pessoas defensivamente racionais, agressivamente pragmáticas, focadas apenas em suas necessidades narcisistas feridas porque não foram respeitadas. Todo menino precisa de uma figura masculina que complemente e contraponha a figura feminina, dessa relação dialética entre o arquétipo da Grande Mãe e do Pai é que se formam imagens da anima e do animus, que podem ser contaminadas pelos complexos parentais não resolvidos ou elaborados.

A mãe de Victor era uma mulher rica casada com um homem que se uniu a ela por interesses financeiros, a relação entre os pais não é afetiva, e todo o afeto da mãe é dedicado ao filho. A mãe, ao tentar compensar a ausência do pai, torna-se uma imagem sufocante. A mãe dá todo o amor e carinho, o pai cobra resultados e dedicação, sem nunca valorizar o esforço. Há uma competição entre forças que estão em eterno desequilíbrio. A mãe, não tendo uma relação de fato afetiva com o marido, é simbolicamente violada e abusada como a Medusa. A figura feminina é algo a ser conquistado e dominado, como Victor tenta fazer com Elizabeth. A mulher é um meio, cujo objetivo é a satisfação egóica da conquista. O pai preferia William, então Victor precisa tira-la dele, assim como, em sua fantasia persecutória, William e o pai lhe privaram da mãe.

Victor usa a Criatura como bode expiatório de suas faltas, o responsabilizando pela morte de Harlander, depois da morte de Elizabeth e de William, no entanto, as últimas palavras de William foram de que Victor foi o verdadeiro responsável por tudo.
Victor, ao não assumir a responsabilidade sobre sua criação, tenta destruir a Criatura, mas Elizabeth morre ao tentar protege-lo. Elizabeth parece muito mais consciente da importância de sua própria criação do que ele mesmo.
Victor se sentia enciumado de Elisabeth, tanto por seu noivado com seu irmão, como pela conexão estabelecida com a Criatura.

O momento em que Criatura entrega uma folha à Elisabeth, se assemelha ao momento em que uma criança entrega para a mãe algo que achou especial. Elisabeth entende o gesto, o valoriza, vislumbrando a humanidade da Criatura.
Aceitar que Elisabeth consegue ver a alma das pessoas seria admitir que ele tinha todos os defeitos que ela havia relatado sobre ele.
Nos dois momentos de encontro, Elisabeth escolhe a Criatura. Como ela havia dito, ele tinha algo bom dentro dele, mas que não estava disponível, e a Criatura seria seu lado instintivo, amoroso, ansioso por um contato humano significativo, sua sombra reprimida.
A Criatura experimenta na relação com Elizabeth o mesmo que Victor havia experimentado com a mãe, uma figura feminina amorosa, compreensiva, atenta e presente, e o mesmo que ele havia experimentado com o pai, uma figura masculina agressiva, castradora e distante. Victor se assemelha ao seu pai, mas anseia por alguém como a sua mãe.
Victor parecia acreditar que a Criatura já estaria pronta, mas sua criação necessitava de cuidados, carinho e educação, como qualquer ser que nasce, ou chega à vida.

Em Frankenstein vemos um enorme contraste em relação à Bella Baxter (Emma Stone, de Pobres Criaturas (2024, Yorgos Lanthimos). Nessa versão atualizada de Frankenstein, o Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe), um cientista brilhante, porém nada ortodoxo, traz de volta à vida uma mulher, após seu cérebro ser substituído pelo da filha que ainda não nasceu. ao contrario de Victor, Godwin sabe que Bella é um bebe num corpo de uma mulher adulta, e, ao compreender e respeitar essa condição, observa e protege Bella, enquanto ela vai vivenciando todo o desenvolvimento psicomotor, raciocínio e linguagem, etapa por etapa do desenvolvimento de um bebe necessita, porém num corpo adulto.
A Criatura domina seu corpo e movimentos, mas ainda precisa aprender a se comunicar. Enquanto A Criatura é acorrentada e tratada como não humano, Bella é tratada com amor, respeito e dignidade por Godwin. Bella recebe um nome e sobrenome, uma identidade social, enquanto Victor chama a Criatura apenas de criatura, um ser que não é humanizado pelo seu olhar, apenas pelo de Elizabeth.
Enquanto Bella recebe todo o apoio e compreensão em seu desenvolvimento e adaptação de um cérebro de bebe num corpo de mulher, a Criatura recebe o veredicto de morte. Como Victor não compreende sua própria criação, decide sacrificá-lo. No entanto, a Criatura, em seu exercício natural de aprender como funciona o mundo, fascinado pela folha que desliza pela água, entende que essa seria, instintivamente, sua rota de fuga, e imita o comportamento da folha, fugindo do fogo.
Esse momento simboliza o segundo nascimento da Criatura, o primeiro pela energia do raio, força da natureza amplificada, e o segundo, a separação entre criador e criatura através do fogo (expulsão do paraíso e o empurrão para o desenvolvimento da consciência?). O fogo [e um símbolo arquetípico de transformação, assim como a água é um símbolo de renascimento, simbolizando o ambiente do útero materno. A Criatura desperta mais uma vez da morte, mas dessa vez, envolta em água e lama, elementos primordiais do nascimento da vida na Terra. O primeiro homem bíblico, Adão, nasce do barro moldado com água. Isso dá à Criatura um nascimento simbólico divino, agora ele tem o pai/criador/cientista e a mãe primordial através da natureza.
O renascimento nas águas ainda nos remete aos mitos de Iansã, Iemanjá e Oxum, representantes do arquétipo do feminino e da Grande Mãe, onde o renascimento ou salvação das águas representa um renascimento. Na religião católica, a imersão na água representaria a salvação dos pecados e o início de uma nova vida.

Outra versão moderna de Frankenstein seria Edward Mãos de Tesoura (1990, Tim Burton). Nessa estória, Edward (Johnny Depp) foi criado por um homem gentil e solitário (Vincent Price), com dificuldades de se integrar no mundo. Ele morre antes de completar sua obra, e as mãos de tesoura de Edward, que seriam temporárias até que recebesse mãos humanas, fica uma obra inacabada. Edward permanece isolado do mundo, e usa suas mãos de tesoura criativamente, transformando o jardim em esculturas naturais maravilhosas.
Peg Boggs (Dianne Wiest) o encontra, fica maravilhada pelo que ele é capaz de fazer no jardim, e o acolhe em sua casa. Seu talento é apreciado e utilizado por todos, desde a decoração dos jardins aos cortes de cabelo, no entanto, o domínio de suas mãos de tesoura não é o suficiente para interações sociais mais delicadas. Seu talento é bem-vindo, mas a aceitação do diferente é limitada à sua utilidade, sem alcançar o status de humanidade. A única criação que recebe o status de humanidade é Bella, que, dado ao tratamento respeitoso , amoroso e sem preconceitos de Godwin, pode lutar, simbolicamente, pelo estado de humanidade das mulheres em geral, as quais tem sido objetificadas pela sociedade, assim como Edward e a Criatura o foram.
Os três tem corpos de adultos, mas sem as habilidades de interação social compatíveis com esses corpos. Em seu íntimo, são crianças experimentado o mundo de maneira ingênua e desprotegida. Crianças muito inteligentes costumam enfrentar esse tipo de dificuldade, parecem muito maduras intelectualmente, mas as necessidades de proteção e afeto continuam compatíveis com a idade cronológica, não com a intelectual.
A Criatura havia vivenciado um gesto de carinho com Elizabeth, que aceita o presente (a folha), e compartilha com ele o maravilhamento em relação àquela obra da natureza, suas mãos se tocam, não com a curiosidade ocorrida no mesmo gesto entre ele e Victor, mas como um momento real de intimidade e afeto.
Essa memória pode ter feito com a Criatura compreendesse e ansiasse por receber o gesto de carinho que observa, de um avô cego[2] (David Bradley) em sua neta Anna-Maria (Sofia Galasso. Esse afago carinhoso na cabeça, desperta o interesse da Criatura, que até o momento só havia presenciado atos agressivos e perseguições. Escondido no celeiro da família, protegido do frio e das agressões que não compreende, ele aprende não apenas a ler junto com Anna-Maria, mas observa como o velho cego trata a neta com carinho e compreensão, e uma nova realidade menos cruel, mais reconfortante, se vislumbra diante de seus olhos.

Ele ouve as histórias, ensinamentos, e se comove, acima de tudo, com a bondade e sabedoria do velho cego. Em troca, sensibilizado pelo que tem recebido em silencio, faz vários serviços necessários à família, e o velho cego passa a chamar a ajuda recebida como um presente do Espirito da Floresta. O velho cego, simbolicamente, batiza a Criatura de Espírito da Floresta, sendo essa a primeira identidade que ele recebe, agora ele sabe quando se dirigem a ele e a seus feitos. No entanto, ele ainda não é reconhecido como ser humano, mas como um espirito da natureza.
Pela primeira vez, a Criatura é reconhecida como espírito, ou seja, ele é um corpo capaz de ter uma alma. Os indígenas brasileiros eram considerados como “sem alma”, o que permitia que fossem tratados “sem humanidade”, pois eram “desalmados”. Ou seja, não basta ser um corpo que se move e que funciona, é preciso ter alma, identidade, desejo e vontade para sermos considerados humanos.
Tanto quanto Edward, a Criatura é respeitada pela sua utilidade, colhe gravetos para o fogo, constrói cercados para as ovelhas, mas deve continuar distante, não pode ser visto ou privilegiado com o relacionamento afetivo humano. Bella é desejada pela sua beleza, sua utilidade está em satisfazer os desejos dos homens, que se desconcertam ao saber que, na verdade, eles estavam tambem satisfazendo aos desejos dela, o que é revolucionário. Bella foi cuidada, amada, compreendida e protegida por Godwin, portanto tem a autoestima que falta tanto à Edward quanto à Criatura.
A Criatura reconhece que apenas o velho cego seria capaz de aceita-lo, pois, ao ser cego, via além das aparências, ou seja, da persona. O cego reconhece sua presença, sabe que ele é o Espirito da Floresta, sabe que era um homem que não queria ou podia ser viso, e respeita sua condição. Ele reconhece suas dores, cicatrizes e sofrimento, mas tambem que ele tinha bondade dentro dele. O velho cego é culto, além de sábio. Ensina tudo que pode para a Criatura. Em um determinado momento, a Criatura tem a coragem que pegar a mão do velho e colocar em sua cabeça, para receber um afago, e o velho cego sustenta o gesto de carinho tão ansiado pela Criatura.
A Criatura observa tudo à sua volta, e vai tendo valiosos insights. Um deles é expresso na observação de um ataque de lobos aos carneiros, e a reação dos homens, atirando e matando os lobos. Ele conclui que a agressividade dos lobos em relação aos carneiros, dos homens em relação aos lobos, e dos homens em relação a ela não era uma questão de ódio específico a cada criatura, mas sim uma luta de extermínio em relação ao diferente, ao que não se comporta de acordo com as expectativas.
O diferente é incompreensível e ameaçador. O diferente é o estranho, ou o estrangeiro, do qual preciso me proteger, ou atacar. As raízes da xenofobia estão no estranhamento e rejeição do outro diferente, seja uma criatura, uma pessoa com alguma deformidade ou cicatriz, ou alguém que não se parece comigo de alguma maneira. [3]
Frankenstein, assim como Bella e Edward, são como os eguns,[4] ou mortos vivos, ou zumbis, ou criaturas que estão no limbo, entre a vida e a morte, situação que deixa a todos, inclusive eles mesmos, sem saber exatamente qual lugar devem ocupar. O novo e desconhecido sempre causa estranheza.
Edward Mãos de Tesoura, que não tinha os instrumentos adequados para se relacionar, volta para o isolamento. Bella, que foi amparada pelo pai Godwin, que lhe proporcionou uma mãe substituta (a governanta) suficientemente boa, conquista sua liberdade e independência, se tornando ela própria uma médica e cientista. A Criatura, com o auxílio do Capitão Anderson, pode confrontar Victor, seu criador/pai egoísta, e reivindicar seu lugar como sujeito, não como objeto. O acolhimento do Capitão Anderson foi transformador para todos, inclusive ele próprio. Ao empatizar com a estória desses dois homens, testemunhando suas dores e conflitos, se torna mais acolhedor frente à demanda de sua tripulação, que ansiava voltar para casa após o navio ficar preso e isolado pelo gelo, decidindo levar o navio e a tripulação de volta para casa.

A Criatura, apesar de todas as agressões sofridas pela tripulação do navio, usa sua força descomunal para empurrar o navio e romper a barreira de gelo que os isolava.
Se pensarmos no gelo como água congelada, sendo a água um dos símbolos das emoções, inclusive da tristeza, solidão e isolamento, o navio e sua tripulação, formada totalmente por homens simbolizaria o resgate do arquétipo masculino criativo, que cuida, acolhe, conforta e protege os mais fracos. Esse masculino agora pode entrar em contato com suas emoções, com suas fragilidades, ou seja, o arquétipo do herói masculino que deve seguir em frente, mesmo sem condições físicas e emocionais de o fazer, pode aceitar seus limites e recuar, pois o recuo muitas vezes é necessário para que recuperemos nossas forças.
A Criatura exerce o ato heroico de libertar o navio e seus homens, mas segue sozinho, caminhando pelas geleiras que representam seu isolamento emocional, porém consciente de quem ele é.

Ele, que foi montado como um boneco de retalhos de restos de soldados mortos em combate, deixados na neve, ganhou vida pela força da natureza, pela força do raio, depois foi expulso pelo seu criador através do fogo, mas se salvou, morrendo mais uma vez e renascendo das águas, morreu mais uma vez pelos tiros da família do velho cego, e renasceu outra vez sobre o gelo. Morreu ainda mais uma vez após ser atingido pelos tiros, pelo fogo, descendo às profundezas das águas geladas, e renasceu ainda outra vez, chamuscado pelas chamas e congelado pelas águas. Seu pobre corpo de retalhos humanos voltava da morte tantas vezes, como os vários cadáveres que somaram seu todo retornaram à vida através dele.
Tanto os soldados mortos na neve, como o navio e sua tripulação isolados na neve representam a solidão masculina e seu isolamento emocional. A Criatura é formada de restos encontrados na neve e encontra a oportunidade de confrontar suas dores na neve.
A Criatura, ao se desenvolver e seguir seu processo de individuação, contou com o reconhecimento de sua existência através do olhar feminino de Elizabeth, num misto de arquétipo da Grande Mãe acolhedora e do olhar amoroso da anima. Ele ainda pode aprender como uma família amorosa acolhe suas criações, como observou o carinho e atenção dedicados à Anna-Maria. Seu complexo patriarcal negativo pôde ser confrontado pelo encontro com o avô cego, que cumpriu a função tanto do arquétipo do velho sábio, quanto do arquétipo do Pai em seu aspecto positivo. A função dos avós, quando exercida adequadamente, também é resgatar aspectos dos complexos parentais deficitários ou mal resolvidos.
Primeiro ele precisa receber o carinho do avô cego, para se fortalecer e desenvolver um ego mais estruturado, depois, a escuta atenta do Capitão Anderson, que exerce o papel de função transcendente, ou terapêutica, da escuta qualificada de ambos, Victor e a Criatura. Apesar de sua escuta ser silenciosa, as emoções que ele experimenta são transformadoras. Victor foi acolhido por um homem que finalmente o aceita, o escuta, e que o acolhe, e oferece esse mesmo direito à Criatura, tratando-os como iguais. Victor, agora fragilizado, confronta seu próprio egoísmo e reconhece a Criatura como um ser, um sujeito, não mais como a coisa que ele criou sem saber ou pensar claramente sobre as consequências ou os próximos passos.
A Criatura cobra dele a responsabilidade sobre sua criação, como um filho cobra do pai o carinho, afeto e proteção que lhe seriam de direito. Victor, ao vivenciar a rigidez do próprio pai em relação a ele, e o carinho a atenção que o pai dedicava ao seu irmão, desenvolveu uma inveja, um rancor, característico dos excluídos e humilhados. A mesma dureza que encontramos nas primeiras cenas com o Capitão Anderson, onde cumprir a missão era mais importante do que preservar a saúde física e mental de sua tripulação.
A Criatura pede que Victor que de uma companhia, tal qual Adão recebe Eva de Deus, pois o ser humano não deve estar só, mas Victor considera o pedido uma aberração, condenando sua criatura à solidão eterna.
A empatia do Capitão em relação ao embate entre criador e Criatura o fez rever seu próprio papel como pai simbólico de sua tripulação. A honra e o dever cederam lugar à compaixão, regatando valores humanitários geralmente atribuídos às mulheres e ao feminino, mas que são parte de toda a natureza humana, e que precisam ser resgatados por todos nós.
Victor consegue sua redenção pedindo o perdão da Criatura, mas a Criatura só consegue uma redenção parcial, pois é condenado à solidão e isolamento emocional simbolizado pelo gelo.
A Criatura completa sua jornada heroica de redenção de um masculino insensível e isolado emocionalmente, mas não consegue aquilo que mais deseja, um contato afetivo com alguém igual a ele, que possa lhe acompanhar pela eternidade.
Seria um homem capaz de suprir essa necessidade de isolamento emocional de outro homem, ou essa seria uma missão a ser resgatada pelo feminino arquetípico, da anima constelada através de uma figura feminina, como Elizabeth e a mãe de Victor poderiam ter sido para alguns desses homens? Enquanto Elizabeth, a mãe de Victor, e tantas outras mulheres qua não sentem que tem um lugar no mundo patriarcal, a redenção do masculino não será possível, pois a redenção do feminino e do masculino são dependentes uma da outra.

Referencias Bibliográfica
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LEVINAS, Emmanuel. Alterity and Transcendence. London: The Alone Press , 1999.
SCHNEIDER, Solange B. O Feminino e o Masculino - por meio da cultura, religião, mitologia e contos de fadas. Curitiba, PR: Appris, 2021.
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SKREFSRUD, Thor-André. The Buber-Levinas Debate on Otherness: Reflections on Encounters with Diversity in School. Inland, Norway: [S.n.], 2022.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América - a questão do outro. 2. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes.
VON FRANZ, Marie-Louise. A Individuação nos Contos de Fadas. ISBN 85-05-00211-3. ed. São Paulo: Paulinas, 1985.
VON FRANZ, Marie-Louise. Shadow and Evil in Fairy Tales. Boston & London : Shambala, 1995.
[1] A análise do Mito da Medusa está em meu livro O Feminino e o Masculino, capitulo .
[2] O arquétipo do velho sábio, tão necessário ao processo de individuação, nesse caso, proporciona a vivência do arquétipo patriarcal em seu aspecto positivo.
[3] O assunto da xenofobia e das dificuldades em se estabelecer uma relação de alteridade são abordadas profundamente em meu livro Complexo Individual e Cultural: Entre o Fascínio e o Perigo a Busca pela Alteridade nas Relações Interculturais, Appris, 2023
[4] Discuto essa questão em meu livro O Feminino e o Masculino – por meio da cultura, religião, mitologia e contos de fadas, no capitulo Iansã. Appris, 2021.






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