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AD ASTRA - Rumo às estrelas: O complexo patriarcal no processo de individuação masculino

Atualizado: 13 de mai. de 2020


AD ASTRA – Rumo às Estrelas: O complexo patriarcal no processo de individuação masculino

AD ASTRA

Ad Astra, ou Rumo às Estrelas, conta a história de Roy McBride, interpretado por Brad Pitt, um astronauta respeitável e competente em suas funções. Embora várias reviews do filme afirmam que Roy fosse levemente autista, o diretor James Gray se baseou no fato de que a Nasa busca indivíduos que não precisem de interação social, portanto não entrarei na discussão sobre se Roy é ou não autista, mas sim nas implicações que a repressão dos sentimentos em função de uma adaptação social e profissional desempenham no homem e em suas varias personas.

Conforme o enredo se desenrola, Roy narra seus pensamentos, enquanto se submete às periódicas análises de seu estado psicológico. Ele descreve seu estado de disposição física e emocional na forma de um relatório frio e impessoal, embora fale na primeira pessoa, parece distante de seu próprio mundo.

O trabalho aparece como sua prioridade a todo momento, e seu desempenho é tão perfeito, que parece quase robótico. Roy é uma máquina de bons desempenhos, controla suas emoções e consegue se manter calmo mesmo nas situações mais estressantes.

Roy consegue, ao longo de toda a narrativa do filme, um desempenho e competência muito acima da média, resolvendo problemas onde outros falharam. Mesmo com a morte de varios companheiros sendo causada como consequência de seus atos, são relatadas como parte inerente à ação. Ele relata os fatos como ocorreram, deixando que a avaliação de seu comportamento seja feita por seus superiores. Ele parece não julgar suas próprias ações ou a de seus companheiros, ao menos durante uma parte do filme.

O cumprimento do dever está acima de tudo e de todos, até dele mesmo.

O arquétipo patriarcal, como todo arquétipo, tem as polaridades positivas e negativas. Em seu aspecto positivo ele propicia a ordem, o estabelecimento e o respeito às regras. A vida em comunidade fica mais fácil quando todos sabem de seus deveres e obrigações. O respeito às hierarquias também é um fator positivo, na medida em que se atribui a quem está no comando o conhecimento e a sabedoria em tomar as melhores decisões.

Neste sentido, Roy teve incorporado em sua personalidade varias características positivas do arquétipo patriarcal, porem ficou fixado nelas, distanciando-se das características do arquétipo matriarcal onde o afeto, a intimidade e o contato com os próprios sentimentos e emoções fazem parte do desenvolvimento da personalidade e são fundamentais para o arquétipo de Alteridade, o arquétipo do relacionamento, regido pela Anima e pelo animus, onde o outro e as relações afetivas podem abarcar características tanto do arquétipo matriarcal quanto do arquétipo patriarcal.

Ao lado do arquétipo matriarcal reprimido, observa-se que a função sentimento, a função psíquica que julga o valor de todas as coisas mostra-se pouco ou quase nada desenvolvida, enquanto a função pensamento mostra-se superdesenvolvida. Toda vez que uma função é muito desenvolvida, sua função oposta mostra-se menos desenvolvida, como no caso de Roy.

Roy tem uma companheira, mas está distante dela, como tantos profissionais bem-sucedidos, o trabalho, o dever e a responsabilidade vêm em primeiro lugar. Especialmente indivíduos que tem uma profissão de destaque e de grande responsabilidade podem ficar presos nesta persona de eficiência, mas também na satisfação que cumprir seu trabalho e de ser reconhecido por isso pode representar. Desta forma, temos uma fantasia de valor pessoal ligada ao desempenho, onde ter uma performance de excelência parece promessa de sucesso e felicidade pessoal. Claro que esta fantasia de excelência passa pela persona, tão valorizada em nossa sociedade. A persona patriarcal é focada na busca de admiração e reconhecimento de seus pares, no caso de Roy, de seus colegas e superiores. Faz parte do dinamismo patriarcal a fantasia de que o trabalho e o cumprimento de metas são o suficiente para a felicidade e bem-estar do indivíduo.

O bom desempenho profissional dos homens, alem de torná-los valiosos no mercado de trabalho, parece torná-los mais atraentes para relacionamentos. Se antes o homem primitivo precisava mostrar-se um bom caçador, hoje o homem moderno deve se mostrar capaz de se destacar entre os caçadores de sucesso modernos. Talvez nas tribos primitivas os homens se sentissem menos isolados, já que a cooperação do grupo era determinante para o sucesso da empreitada. Hoje em dia tem-se a ilusão de que o sucesso do desempenho é mérito do individuo sozinho.

A solidão de Roy é a mesma de muitos homens que sacrificam sua vida interior em busca de sucesso na vida profissional e social.

A companheira de Roy parece tão distante dele, que parece quase desfocada na tela, dado que ele concentra toda a atenção em seu desempenho, e na cobrança constante de uma performance de excelência e de autocontrole que sua profissão exige.

O tempo todo a demanda de cumprir missões e respeitar hierarquias dão o tom do filme. Não há espaço para o dinamismo matriarcal e sua exuberância, nem ao dinamismo de Alteridade, onde as diferenças individuais, o questionamento das ações e suas consequências poderiam ser questionadas de forma que os sentimentos possam ser levados em conta.

Roy é convocado para uma missão de resgate de seu próprio pai, que ele acreditava estar morto há quase trinta anos, também um astronauta respeitável, um verdadeiro herói, pelo menos até aquele momento. O comando parece ter escolhido Roy por duas razões: pela competência, e pelo apelo afetivo que sua presença na missão poderia impactar em seu pai.

Ele descobre que o pai não foi um herói, e sim um traidor da missão a qual estava incumbido, tendo permanecido no espaço no intuito de provar que havia outras formas de vida em algum outro planeta. Seu pai tinha uma fantasia de encontrar vida fora da Terra, e sua rebelião se deu por conta desta fantasia, a tripulação deveria voltar para a Terra, mas o pai de Roy os tratou como desertores e matou a todos, tendo permanecido sozinho no espaço por quase trinta anos.

Interessante frisar que a mesma corporação que seleciona seus astronautas e cientistas pela capacidade de intervir com frieza em suas operações, escolhe Roy pelos laços afetivos com o pai desaparecido, denotando uma ambiguidade, pois ao mesmo tempo espera-se que Roy aja como um astronauta em missão especial, e que use o fato de estar resgatando seu próprio pai como se não tivesse nenhum sentimento ou emoção ligadas a isso. A ambivalência no planejamento da missão coloca Roy em uma situação ambígua, em conflito com seus próprios sentimentos de abandono e reconhecendo sua impotência diante das ordens recebidas.

Esta missão confia desconfiando de Roy o tempo todo, já que estão mandando um filho capturar um pai que traiu e abandonou a missão espacial e a própria família.

A traição é um crime imperdoável para o dinamismo patriarcal, já que a honra e a confiança de que se cumpram os acordos firmados são fundamentais para que as relações se estabeleçam e se mantenham firmes.

As questões de honra também são entendidas ao âmbito familiar e aos herdeiros da família, portanto quando algum membro de uma família se comporta como um traidor, outros membros da família ou daquele clã tornam-se suspeitos de traição.

Partindo deste raciocínio, Roy foi incumbido de uma missão em que ele é usado como isca para capturar um traidor, ao mesmo tempo que é convocado por sua expertise, porem sob a suspeita de poder, ele próprio, se comportar como um traidor. Lembram da expressão: filho de peixe, peixinho é?

Roy é reconhecido como filho de seu pai por seu talento, competência e dedicação, mas também é filho de um traidor, estando sob suspeita.

Os diálogos internos de Roy demonstram que ele não é de todo ingênuo e sabe que faz parte de uma engrenagem maior. Ele sabe que o convite para a missão é uma mera formalidade, já que um convite pode ser recusado, e ele jamais poderia ter recusado esta missão para a qual foi incumbido.

A perspectiva de reencontrar o pai, que ele julgava morto, faz com que ele mostre os primeiros sinais de abalo emocional, afinal, o pai não morreu heroicamente numa missão espacial, mas abandonou a ambos, ele e a missão, optando por não voltar.

Este é um conflito emocional muito presente nas famílias, onde pais e mães se ausentam na missão heróica de prover o conforto e bem-estar de todos, mas muitas vezes se ausentam porque preferem a satisfação do sucesso e do reconhecimento profissional à convivência familiar ou ao cuidado com os filhos. Algumas ausências, mesmo que heroicamente justificadas, são um tipo de abandono, já que o herói está sempre em algum tipo de jornada pessoal, e o cuidado ou sacrifícios que se afirmam serem feitos em beneficio do outro, pode ser, de fato, um desejo de buscar o próprio caminho, em que o cuidar do outro torna-se um empecilho, justificado pela defesa de que o sacrifico é em beneficio da família ou da comunidade, enquanto a jornada esta a serviço de seu próprio processo de individuação, muitas vezes através do sacrifício dos laços afetivos.

Roy está na mesma situação que seu pai, deixando a esposa ao partir para uma longa missão, mas também está na pele do filho abandonado em prol de uma missão. Quem conhece os dois lados de uma mesma situação tem mais variáveis externas e internas para avaliar seu próprio processo. Como Roy foi ferido pelo abandono do pai, ele parece compreender que ele mesmo pode ser um abandonador.

Talvez por isso Roy não tenha filhos, pois sabe que a vida que leva não permitiria que ele fosse um pai presente, pois não é presente nem como marido e companheiro.

Aqui vemos a ferida de abandono, característica do complexo matriarcal negativo, juntamente com o complexo patriarcal negativo, pois no fundo ele parece saber que a ausência do pai é uma escolha, mesmo que por razões nobres, que ele sabe que são opcionais, pelo menos no início da carreira.

Roy segue a mesma carreira do pai, numa tentativa inconsciente de se aproximar da imagem deste pai ausente, fazendo jus à expectativa de que ele mostre as mesmas qualidades presentes neste pai.

Roy tenta se tornar o reflexo do espelho que ele imagina que o pai narcisista deseja encontrar, porem o narcisista muitas vezes já abandonou os filhos ou companheiros/as muito antes disso acontecer, de fato ou simbolicamente.

Aspectos do feminino são praticamente ausentes no filme, a maioria das mulheres presentes se comportam dentro dos parâmetros da corporação militar/governamental, cumprindo seus deveres sem questionamentos, e sem se deter nos aspectos individuais de Roy. Há apenas uma mulher que questiona a ação de Clifford, pois seus pais foram mortos por ele. Ela é a única personagem que traz o questionamento sobre a consequência de uma ação na vida dela. Ela sai do automatismo do pensar robótico e tenta buscar a empatia, ou quem sabe a culpa ou a responsabilidade sobre a morte de seus pais, tentando humanizar as açõe e suas consequências.

Roy, por outro lado, é capaz de ver as emoções de seus colegas, seus medos e deficiências decorrentes deste medo, assumindo o controle efetivo quando necessário. Talvez isto demonstre que apesar de ele não demonstrar seus sentimentos, não perdeu o contato com eles, mas os reprimiu para se adaptar à demanda de sua profissão, ou quem sabe de sua condição masculina.

Sentimentos constantemente reprimidos pela persona fria, competente e cumpridora do dever, como no caso do personagem Roy, é passível de ser encontrada em várias profissões, afinal, demonstrar os próprios sentimentos e fragilidades no ambiente profissional não é bem aceito, o problema é quando levamos esta persona profissional para a vida pessoal e familiar.

Uma persona adequada deve ser flexível aos varios momentos da vida, esta rigidez implica em deixar que estes possíveis papeis sociais desempenhados de maneira rígida tornem-se inconscientes e passem a representar aspectos da sombra pessoal, embora no caso de Roy, esta falta de flexibilidade de sua persona profissional possa estar relacionada à sombra coletiva patriarcal.

Tanto os arquétipos matriarcal e patriarcal fazem parte do desenvolvimento da personalidade, e ambos trazem características necessárias ao equilíbrio emocional de todo indivíduo. O arquétipo da Alteridade, caracterizados pela Anima e pelo animus, necessitam que os complexos matriarcal e patriarcal sejam elaborados, e não que um seja reprimido em detrimento do outro. Foi o que aconteceu com Roy. A Anima, representada pela figura distante da esposa, embora presente, não é acessada através do relacionamento afetivo, mas sim pela criatividade na busca de soluções inusitadas e heroicas que Roy apresenta no decorrer do filme. Sua criatividade denota um fator positivo no desenvolvimento de sua personalidade.

A viagem em busca do pai tem várias características da jornada do Herói, afinal o diretor se declara leitor de Joseph Campbell, e queria descrever uma jornada mítica. No entanto quero me deter ao encontro com o pai de Roy, Clifford McBride, interpretado por Tommy Lee Jones.

Clifford foi ao espaço com o intuito de provar que existia vida fora da Terra, ele queria provar a existência alienígena, e passou a vida obcecado por esta ideia. Quando a tripulação quis voltar para a Terra, ele considerou isto um motim e encerrou o que considerou rebelião matando a todos e permanecendo sozinho por quase trinta anos.

Clifford considera sua missão um fracasso, já que não encontrou vida alienígena, e não percebe que o fato de não a ter encontrado era, de fato, uma descoberta cientifica por si só.

Roy pôde examinar toda a documentação minuciosa que Clifford deixou, e constata que o pai não enxergou a beleza de todas as descobertas que havia feito, e admirou a beleza do cosmos e das estrelas.

Quantas vezes ficamos tão obcecados pelo que queremos ou buscamos que não percebemos a beleza da jornada?

Quantas vezes, em busca da confirmação de nossas crenças ou ideias nos isolamos do mundo, por julgarmo-nos incompreendidos, quando na verdade estamos obcecados e cegos a qualquer outra possibilidade?

Acreditar e querer provar que o que cremos é uma verdade pode ser uma grande armadilha, paralisando toda nossa vida e comprometendo todas nossas atitudes. Uma crença radical como a de Clifford representa um complexo que dominou toda sua vida.

A viagem de volta à Terra é extremamente longa, e vemos Roy transformado, agora consciente da solidão e demonstrando vontade de não se sentir mais tão sozinho. O encontro com o pai, mesmo que possa ter parecido distante, fez Roy analisar o principal erro cometido por seu pai, o de não enxergar aquilo que não buscava. A busca de Clifford o cegou, mas a busca de Roy pelo pai foi transformadora. Ele percebeu que poderia ter uma visão de mundo diferente da de seu pai. Ele olha para o mesmo material de pesquisa que seu pai coletou, ele faz uma jornada semelhante através do espaço, mas eles eram bem diferentes, e tiveram visões bem diferentes sobre experiencias semelhantes. A beleza e a imensidão do cosmos foram transformadoras para Roy, porem não tocaram a alma de Clifford.

A consciência cósmica, do infinito e de saber que a Terra era o único planeta habitado trouxe uma visão contemplativa da vida e do Universo. Ele foi tocado pelo numinoso. Seu pai pôde observar a beleza do Universo por quase trinta anos, e não se deixou tocar, já que estava obcecado em provar suas teorias cientificas, ficando autocentrado, narcisisticamente falando.

O Universo é um dos símbolos do Self e do processo de individuação.

Roy estava apto ao processo de individuação, e à medida que compreendeu que seu pai estava preso ao próprio complexo narcisista, isto o libertou da identificação com o pai, deixando-o livre para seguir seu próprio processo de individuação, abandonando uma certa imitação do caminho trilhado por seu pai, que o desviava de seu próprio modo de ser.

A presença da anima, representada pela esposa de Roy, interpretada por Liv Tyler, está presente após cada um de seus retornos, sempre demonstrando preocupação com seu bem-estar e em estreitar os vínculos amorosos entre eles. Este também é um sinal de que sua jornada em direção ao processo de individuação, através da elaboração de seus complexos matriarcal e patriarcal negativos já se iniciou. É necessário libertar a Anima da influência dos complexos matriarcal e patriarcal negativos, para que o processo de individuação possa ter sua jornada continuada.

Agora a missão seria estabelecer um relacionamento afetivo de maior proximidade, onde as necessidades emocionais de cada um fossem contempladas.

Referências Bibliográficas

Bly, Robert – Iron John

Campbell, Joseph – O Herói de Mil Faces, Cultrix-Pensamento

Jung, Carl Gustav – CW6 – Psychological Types

CW9/1 Archetypes and the Collective Unconscious

Neumann, Erich – A Grande Mãe

Origens e História da Consciência

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