O filme Fragmentado, ou ‘Split” em inglês, trata do caso de Kevin, um homem com múltiplas personalidades, sendo o segundo filme da trilogia de M. Night Shyamalan, composta, além de Fragmentado, por Corpo Fechado e Vidro, cujas análises encontram-se disponíveis aqui no Blog.
Não é a primeira vez que o cinema aborda este tema, sendo “Psicose” um dos mais conhecidos e aclamados, que agora foi transformado numa serie disponível na Netflix, como “Bates Motel”, onde é contada a história de Norman Bates, isto é, a história que originaria o Longa metragem “Psicose”.
A dissociação de personalidade, tal como vista no filme, é rara, e muitos detalhes do filme tem um caráter cinematográfico, mais do que psicológico, que será abordada de forma simbólica neste texto.
O objetivo não é de esgotar a discussão sobre o tema, mas lançar algumas considerações esclarecedoras ao público leigo, já que tenho recebido inúmeros questionamentos a respeito de muitos detalhes do filme, bem como sobre a existência ou não de tal fenômeno.
O filme apresenta o sequestro de três adolescentes, duas delas estavam sendo observadas, a terceira foi sequestrada por acaso, ao pegar uma carona com as colegas.
Kevin seria a personalidade principal, ou o que Jung denomina, o complexo egoíco. Kevin apresenta 23 personalidades, cada uma com características distintas, com idades, interesses e comportamentos diferenciados, como se fossem realmente outra pessoa.
Kevin sofreu abusos durante a primeira infância, e desenvolveu Transtorno Obsessivo compulsivo, TOC. Dennis é a personalidade que mantém tudo limpo e organizado, numa tentativa de conter o abuso e a ira materna, esta parece ter sido a primeira dissociação por stress pós-traumático deste caso.
Dennis surge para proteger Kevin, evitando que a mãe o puna indevidamente. Tal comportamento não costuma resolver o conflito, pois pais ou mães abusivos não costumam interromper o abuso no caso de bom comportamento dos filhos, pois o abuso ou caráter agressivo e destruidor é parte da personalidade deste adulto, não sendo a criança o fator desencadeante do abuso, e sim a vítima inocente de uma relação de poder existente entre adultos e crianças, naturalmente frágeis, pela característica natural da infância, onde as crianças precisam e dependem dos adultos para tudo. Dennis parece ser a personalidade adulta forte e responsável, que protege a criança indefesa de um mundo hostil. Numa personalidade saudável, estas características seriam reconhecidas como resiliência e estariam naturalmente incorporadas à personalidade do sujeito.
Outra personalidade apresentada no filme seria Patricia, uma fanática religiosa, além de Barry, um estilista em crise existencial, e Hedwig, uma criança de nove anos. As outras personalidades não aparecem no filme, mas Kevin tem em seu computador um link para cada uma das identidades, simbolicamente, seu computador está tão dividido em ‘janelas’ de consciência quanto ele próprio.
As ‘janelas de consciência’ são descritas como ‘luz’, e cada personalidade teria uma cadeira, tentando uma oportunidade para se sentar sob a luz, isto é, para acessar a consciência e ter vida própria.
O conceito utilizado no filme é o mesmo utilizado por Freud, que utiliza o simbolismo da luz para explicar a diferença entre consciente e inconsciente.
O filme insinua que Kevin poderia escolher quem estaria na luz, o que se mostra falso, não só no filme, como na realidade. Cada personalidade desempenha um mecanismo de defesa que Kevin desenvolveu para sobreviver aos inúmeros abusos sofridos durante toda a sua vida. As personalidades funcionam como complexos autônomos, que assumem o comando da consciência de acordo com os perigos detectados.
As personalidades são tentativas fracassadas de adaptação e superação aos abusos, e à completa cisão da personalidade, a psicose propriamente dita.
Kevin tem uma psiquiatra muito simpática, doce a amável, Dra. Fletcher. Na verdade, Dra. Fletcher é doce demais, simpática demais, entusiasmada demais com o fenômeno das personalidades múltiplas de seu paciente, fantasiando que as personalidades múltiplas seriam uma capacidade humana especial, e talvez superior.
Dra. Fletcher comete vários erros durante o processo, um deles é não ficar atenta à transferência negativa, supervalorizando a transferência positiva com algumas das personalidades. Ela também falhou ao não dar credito à existência da vigésima quarta personalidade, “A Besta”, interpretando esta possibilidade como uma ameaça de tentativa de controle que Patricia e Dennis estariam tentando exercer sobre as outras personalidades. Isto, por si só já seria um alerta importante, pois num caso de dissociação de personalidade a única personalidade que poderia de fato assumir o controle, seria Kevin, o ego do paciente que estava fragilizado e dissociado, tentando evitar a psicose.
As defesas psicológicas são tentativas de adaptação, além de importantes ferramenta de defesa contra o sofrimento, quando Freud descreve as primeiras estruturas defensivas, tais como negação, sublimação, conversão histérica, e tantas outras, tais defesas tentam preservar o ego, e evitar a ruptura da personalidade.
Jung constrói a teoria dos complexos, e o ego seria chamado de complexo egoíco, parte da psique responsável pela coesão da estrutura da personalidade, conferindo o caráter único de cada personalidade.
Todos nós teríamos, além do ego, a persona, a sombra, anima e animus, dependendo de sermos homens ou mulheres, além do arquétipo do velho ou da velha sabia. Além disso, os arquétipos da mãe e do pai auxiliariam na estruturação da personalidade. O arquétipo da mãe seria predominante nos primeiros anos de vida, estruturando os cuidados com o próprio corpo e a ligação afetiva primordial entre o bebe e a mãe, ou a pessoa que cuidasse dele. O arquétipo do pai é o arquétipo da ordem e do logos, apenas para resumir rapidamente conceitos tão complexos e importantes para o estudo da teoria Junguiana.
Kevin sofreu sérios abusos na mais tenra infância, tendo seu desenvolvimento afetado drásticamente. Crianças pequenas não são capazes de manter a ordem e a limpeza dos ambientes da maneira que muitos adultos gostariam, criança saudável faz bagunça, faz sujeira, não porque seja mal comportada, mas porque ainda não se desenvolveu o suficiente para aprender certos princípios de higiene e organização.
Kevin tinha uma mãe super exigente, sádica, capaz das maiores atrocidades, caso ele não se comportasse de acordo com as exigências dela. O pai os abandonou, e o filme não deixa exatamente claro o papel que o pai desempenhou na educação de Kevin, mas o abandono também caracteriza abuso, ainda mais exacerbado quando se abandona um ser indefeso à mercê de alguém claramente abusivo.
Todo abusador tem um cúmplice, ou por ação, ou por omissão.
Patricia é a única personalidade feminina que aparece no filme, ela é uma fanática religiosa, que prepara um ritual de purificação. Dennis é um pervertido, que sequestra moças para vê-las dançando nuas. Patricia o controla, mas por questões morais e religiosas de cunho fanático. Ela transforma uma perversão adolescente em um ritual de purificação religioso primitivo. As adolescentes sequestradas seriam as que nunca sofreram, ou nunca sofreram abuso, as que eram muito bem tratadas, por isso deveriam sofrer para se purificar.
O ritual mostra uma tentativa de elaboração do sofrimento e do abuso através de um rito de purificação que não só justificaria o abuso por Kevin, mas transformaria o abusado num emissário de uma justiça maior, ou superior. O ritual é uma busca de significado para o sofrimento dilacerante que Kevin sofreu em sua vida.
A busca de significado é fator fundamental na obra de Jung, e condição necessária para o processo de individuação.
Dra. Fletcher deixou escapar um incidente fundamental para o tratamento, o abuso que Barry sofreu por duas estudantes que visitavam seu local de trabalho.
Barry, com características de comportamento homossexual, sensível e delicado, foi desrespeitado por duas garotas, que colocaram as mãos dele sobre os seios delas. Dra. Fletcher não deu a devida importância ao caso, mas o incidente reativou o trauma, trazendo à tona “A Besta”, já que Dennis não pode proteger as identidades desta agressão.
Quando um trauma é reativado, pode surgir com mais energia e fúria do que antes, como se toda a tentativa de elaboração do trauma, todos os esforços de resiliência dessem um basta, como quando um limite é ultrapassado pela milionésima vez, e dizemos chega.
O que poderia ter sido encarado como uma brincadeira boba por parte das adolescentes foi o desencadeador de uma raiva primitiva, irracional, descontrolada.
“A Besta” é a personalidade mais sombria que ficou com o papel do ódio e da vingança, porém orquestrada pelo delírio religioso de Patricia e Dennis.
De acordo com Jung, a anima é a parte da estrutura da personalidade masculina responsável pelos relacionamentos amorosos e também pela religiosidade. É Patricia que prepara as adolescentes, penteando seus cabelos e enfeitando-as com flores, porem é Dennis quem se encarrega do cativeiro e do planejamento do ritual em que a Besta purificaria todos.
Dra. Fletcher não viu que Kevin estava psicotizando, ou viu tarde demais, já no zoológico.
Hedwig traz um caráter um pouco mais lúdico ao filme, e quase nos faz acreditar que é inofensivo. Ele representa Kevin na pré-adolescência, tentando se aproximar do sexo oposto, porém totalmente dominado por Dennis e Patricia, tal e qual uma criança abusada tantas vezes se identifica com o abusador, perpetuando o abuso.
Durante a pré-adolescência e adolescência a personalidade sofre transformações importantes, fazendo uma releitura da educação recebida e relativizando a importância dos pais ou adultos para o adolescente.
Provavelmente os abusos continuaram também nesta fase, e Hedwig existe como uma certeza que esta fase não foi superada, e sim fixada. A cena em que Hedwig leva Casey ao seu quarto, e dança para ela, parece que seria algo lúdico, porém o que Casey vê nesta cena da dança mostra claramente a natureza ambígua de Hedwig, mostrando seu lado sombrio.
A personagem de Anya Taylor-Joy, Casey, também sofreu abuso na infância, porém numa idade um pouco mais tardia, e com uma diferença drástica para a formação de sua personalidade, pois seu pai aparece no filme não apenas como um pai amável, protetor, companheiro e confiável, mas também como um incentivador de suas qualidades de observação e autoconfiança. O abuso começa durante um acampamento, em que o abusador já havia sido ridicularizado pelo seu pai na cena da lanchonete, e Casey foi treinada para ser uma caçadora. Ela percebe o abuso logo em seguida, e tenta atirar no abusador, seu tio, errando o alvo. Casey cai nas garras do abusador após a morte do seu pai, tendo o abuso perpetuado em sua vida, até o momento do sequestro, onde seu tio não vai buscá-la na festa onde ela foi convidada ‘por educação’.
Casey passou a vida lidando com um abusador, e discordo da critica do filme quando considera que o filme enfatiza que mulheres abusadas se tornam mais fortes.
Casey se fortalece na relação com o pai, que a ensina a se proteger, e lhe atribui o papel do caçador, não da caça.
Ela aprendeu a lidar com a situação de refém, de subjugada, e passa a observar todas as personalidades como um predador. Ela não aceita a condição de presa, e passa a tentar estabelecer uma relação com a única personalidade que lhe parece viável, Hedwig.
Este comportamento é fundamental, pois ela tem acesso ao computador e ao depoimento de várias personalidades, descobrindo a arma e a munição. Sua capacidade de lidar com a situação de cativeiro e com as múltiplas personalidades vêm não apenas do fato dela ter sido abusada, mas principalmente da estruturação de sua personalidade, oriunda do relacionamento com seu pai.
Casey tem o corpo todo cortado, fenômeno comum em adolescentes, os invés de ter a personalidade dissociada, ela aprendeu a se dissociar da dor, bem como a suportá-la.
O pedido para que o mate foi meticulosamente articulado, mas Casey não tem sucesso em matá-lo. Muitas razões poderiam ser levantadas para isso, inclusive uma razão para que o filme tenha continuidade, ou a exploração de caráter paranormal da personalidade “A Besta”. No entanto, observando atentamente cada personalidade apresentada no filme, não há nenhum indicio de tendência suicida, muito pelo contrário, o instinto de sobrevivência vai ficando cada vez mais exacerbado, e os mecanismos de proteção, cada vez mais bem elaborados.
A cena do sequestro, o cativeiro propriamente dito, fica no zoológico, onde Dennis é o responsável pela manutenção. Fui me perguntado porque o cenário principal do filme se dá num zoológico. Me parece que o simbolismo da fera animal se mistura ao simbolismo da personalidade de número 24, “A Besta”. Todas as personalidades anteriores foram tentativas de adaptação que não levaram em consideração o ódio, a revolta, a sede de vingança, que estava reprimida na sombra de Kevin, e também reprimida na relação transferencial com a psiquiatra, pois ela também reprimia a própria sombra.
Ao afirmar para a vizinha que acreditava totalmente em seus pacientes, já que isto seria impossível, pois o dilema a respeito do que se um paciente está ou não dizendo a verdade faz parte da relação terapêutica desde seus primórdios, é um indício de que a psiquiatra estava “inflada”, acreditando ter total controle da situação.
O filme é criticado pela sexualização das adolescentes, porém não podemos deixar de considerar que maus tratos e abusos de qualquer espécie, não só os de cunho sexual, afetam o desenvolvimento da sexualidade como um todo. Também não podemos esquecer que Dennis tinha uma perversão por ver garotas nuas dançando, que foi reprimida por Patricia. Toda repressão acaba por escapar por entre os dedos, e o filme é brilhante ao mostrar que uma personalidade não tem controle sobre a outra, apenas o fortalecimento do ego e integração das várias facetas da personalidade de Kevin, inclusive e principalmente as mais sombrias, poderia evitar o final trágico do filme, e de qualquer processo analítico.
Todo processo analítico lida com dissociações, embora na maior parte das vezes estas dissociações tem um menor impacto na vida das pessoas, algumas vezes complexos são ativados liberando uma grande carga de energia ou agressividade.
Toda vez que perdemos a cabeça no transito, ou explodimos por motivos fúteis, é sinal de que fomos tomados por algum complexo.
Jung diz que nós não temos complexos, os complexos é que nos tem, pois são autônomos e invadem nossa consciência quando menos esperamos.
A sombra não elaborada é carregada de complexos prontos a se apresentar ao menor sinal de contrariedade ou de stress. "A Besta” pode morar em qualquer um de nós, e acredito que a licença poética do filme, onde “A Besta” literalmente sobe pelas paredes, corresponde a uma expressão muito conhecida de todos, como sinônimo de um ódio incontrolável. Também é sabido que pessoas descontroladas emocionalmente tem uma força que parece sobre-humana, e que pacientes sob surto psicótico precisam de uma grande equipe para serem contidos, serem acalmados, geralmente, sob o efeito de drogas ou de algum choque psicológico.
A cena em que Casey atinge “A Besta” com a espingarda poderia ser interpretada de várias maneiras, entre elas, sob a hipótese de que a munição foi tratada para não matar, e sim para assustar ou afastar o agressor, já que a morte da Besta implicaria na morte de todas as personalidades. A arma poderia conter algum elemento para conter animais ferozes, pois em um zoológico, os espécimes são muito preciosos, e não há intenção de mata-los, e sim de contê-los e preservá-los.
Não podemos nos esquecer de um dos diálogos, onde a Dra. Fletcher não sabe exatamente com qual das personalidades ela está falando, as personalidades presentes, entre elas Dennis e Barry se tranquilizam quando a psiquiatra diz que ama todas as personalidades. Isto é, sinaliza o quanto Kevin precisa das outras características, da integração das outras personalidades, e não sua exclusão ou negação, e a morte da Besta não poderia ter sido planejada ou desejada por nenhuma das personalidades.
A Besta se acredita imortal ou dotada de super poderes, mas desconhece que o ataque sofrido pode ter sido apenas uma “maquiagem”, mais um truque de sobrevivência.
A dissociação visa a preservação do sujeito, tanto nos casos mais graves, quanto nas pequenas dissociações a que estamos sujeitos no dia-a-dia.
Referências Bibliográficas
Freud, Sygmund – “Psicopatologia da Vida Quotidiana” , 1901
Jung, Carl Gustav Jung – CW VII “Two Essays of Analytical Psychology”
CW VIII “The Structure and Dynamic of Psyche” CW IX “The Archetypes and the Collective Unconscious”
Para a análise de "Corpo Fechado" siga o link abaixo:
Para a análise de "Vidro" siga o link abaixo:
Texto por Solange Bertolotto Schneider
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