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Corpo Fechado - Inicio da Trilogia

Atualizado: 13 de mai. de 2020


Corpo Fechado

Corpo Fechado, ou Unbreakable, e’ um filme de 2001, dirigido por M. Night Shyamalan que voltou a estar em evidência após os seus personagens principais, David Dunne e Elijah Price estarem vinculados ao filme Fragmentado, sugerindo um novo filme que comporia esta trilogia, a ser lançado em 2019, com o titulo de Vidro.

Corpo Fechado tem como cena de fundo um espantoso desastre de trem que deixa os Estados Unidos em choque. Todos os passageiros das locomotivas acabam mortos, exceto David Dunne, que sai completamente ileso do acidente, deixando todos, inclusive os médicos e ele próprio, em choque. Enquanto, perplexo, tenta entender o que poderia ter salvado sua vida, David encontra Elijah Price, um desconhecido que apresenta uma explicação no mínimo bizarra sobre o fato. Elijah deixa um bilhete no carro de David, durante a cerimonia em homenagem aos mortos no acidente. Um cartão com o endereço da galeria de Elijah, a qual Davíd visita com seu filho, que passa a ter um papel fundamental na história, já que o menino acredita que seu pai seja alguém especial.

Fragmentado

O filme Fragmentado termina com uma cena em que Bruce Willis, ator que interpreta David Dunne em Corpo Fechado aparece, numa referência a seu personagem, um homem que não se fere e que tem uma percepção sobre humana na detecção e no combate do mal. O filme sugere que o personagem de James McAvoy, que sofre de um quadro de dissociação de personalidade múltipla, passa a apresentar poderes de super-herói, ao surgimento da personalidade de número 24, chamada de A Besta. No mesmo final, sabemos que o Sr. Vidro sairá da prisão, e que todos fazem parte deste mesmo universo, no filme. O vilão, Elijah Price, interpretado por Samuel L. Jackson, tem uma doença rara, em que seus ossos se quebram como vidro.

Vidro

Sr. Vidro será o terceiro filme desta trilogia, e complementarei esta analise após a sua exibição. Cada um deles lida com suas próprias deficiências ou habilidades inatas, de acordo com seu histórico e suas escolhas afetivas, onde trauma, amor, saúde, talentos e deficiências afetam a vida de cada um, como a trama do destino e suas escolhas costumam interferir tanto na vida de personagens fictícios, como na vida das pessoas reais.

Encaro esta analise da trilogia como se fosse um processo analítico, em que historias vão se somando a vida de cada indivíduo, com novos personagens e enredos afetando o desenrolar da história, bem como sua compreensão e interpretação.

A analise do filme Fragmentado está disponível em meu website. Agora apresento a análise de Corpo Fechado, já me preparando para a analise do filme Vidro, ciente que possivelmente todas poderão ser revistas ou ampliadas quando a trilogia estiver terminada.

Sugiro que assistam aos filmes antes da leitura, pois além de spoilers, não oferecerei resumo dos mesmos, já que são fáceis de se encontrar e de se assistir.

CORPO FECHADO

Impossível iniciar esta analise sem pensar no significado da tradução de seu título. Unbreakable, que quer dizer inquebrável, foi traduzido para corpo fechado, expressão largamente usada pelas religiões espiritualistas aqui no Brasil, que significa que o mal não poderá possuir nem o corpo, e nem a mente desta pessoa.

Quem tem o corpo fechado não está sujeito as influências do mal, mantendo seu eixo, e sendo, portanto, responsável por suas escolhas, por seu livre arbítrio. No entanto, sabemos que o livre arbítrio está sujeito aos complexos de cada personalidade, e que nossas escolhas são influenciadas por nossa história pessoal e familiar, pelos traumas físicos e emocionais, portanto também pela condição de saúde ou de sua ausência em cada pessoa.

As Polaridades do Mesmo Simbolo

Temos a polaridade extrema entre Elijah, portador de uma doença congênita, em que seus ossos se fraturam com a fragilidade do vidro, tendo nascido com vários ossos quebrados, e que passou a vida suscetível aos traumas físicos e emocionais que esta deficiência proporcionava, sempre amparado e estimulado por sua amorosa mãe, que o incentivava ao contato com o mundo, através dos quadrinhos. Elijah conhece suas fragilidades, seus limites e deficiências e passou a vida a lidar com eles, desenvolvendo um talento relacionado aos quadrinhos, em que se tornou não apenas um estudioso, mas também um profissional bem-sucedido.

Na outra polaridade temos David, um homem aparentemente comum, voltando de uma entrevista de emprego malsucedida, que sobrevive a um acidente de trem de proporções catastróficas, de forma inexplicável, sem nenhum arranhão sequer.

A natureza extraordinária de sua sobrevivência recebe a atenção de Elijah, que começa a questionar David sobre sua saúde, questionando se David não seria o oposto dele mesmo. O inquebrável como oposto ao quebrável, polaridades do mesmo símbolo, onde fragilidade e resistência extraordinária se oporiam.

O Outro como Instrumento de Auto-conhecimento

Elijah e’ obcecado pelo antagonismo entre os personagens dos quadrinhos, pois um herói não existe sem um vilão, e vice-versa, e está disposto a encontrar seu contraponto, numa busca de sentido para sua própria vida. Por outro lado, a vida de David não vai bem, um casamento em crise, uma rotina de trabalho como segurança em um estádio de esportes, mas um filho que busca no pai a figura de pai herói, que se preocupa com ele, que observa a noticia do acidente na TV, que sabe em que trem ele estava, e parece ser o personagem mais vivo e em busca de relacionamento da história.

David parece depressivo, a narrativa do filme parece depressiva, não há energia, os gestos são lentos, há uma tensão depressiva em David, e uma tensão agressiva em Elijah.

O menino acredita que o pai possa ser um super-herói, e numa tentativa desesperada, de talvez o tirar do marasmo da depressão, quer atirar nele, acreditando que a bala não o feriria, numa tentativa de provar que ele poderia sim, ser um super-herói.

Elijah questiona David o tempo todo, e como aqueles que passam a vida mais como observadores, do que como agentes da ação propriamente dita, Elijah passa a observar inclusive como David trabalha, e após uma intervenção de David, que desconfia de um homem que tenta entrar no estádio, tenta checar se David era realmente capaz de prever quem seria um possível agente criminoso no estádio.

David desconfia de um homem, decide fazer uma revista, o homem sai da fila da revista, Elijah o segue, ‘as custas de seu próprio bem-estar, determinado a saber se de fato o suspeito portava a arma que David havia imaginado que este teria. Na perseguição, ele comprova, David havia “visto” a arma no bolso do potencial criminoso, e para isto se acidenta de maneira grave, rolando as escadas e sofrendo, novamente, inúmeras fraturas. O potencial de percepção especial de David lhe era totalmente inconsciente, ele não buscava a confirmação de sua intuição, como muitos não o fazem, acreditando que sua vida era totalmente banal.

David precisou de Elijah para começar a prestar atenção em sua habilidade especial, porém não foi suficiente, precisou na determinação de seu filho, que o admirava, e que queria colocá-lo numa posição de destaque, lembrando de seus feitos como atleta, dos quais David tentava se esquivar. Foi o menino que lhe desafia novamente ao ajudar o pai a se exercitar, colocando mais e mais pesos nos alteres, que David continuava a levantar, ate que os pesos se esgotaram e tiveram que improvisar com latas de tinta.

A fraqueza e o segredo

Quantas vezes na vida só descobrimos do que somos capazes porque a vida nos obriga, ou porque agimos inconscientemente, levados pela emoção ou pela urgência, e descobrimos que somos capazes de muito mais? Todos sabemos que nas diversidades descobrimos talentos e capacidades escondidas pela preguiça ou pela depressão. A criatividade tantas vezes surge da falta de opção e de oportunidade.

Porém o “diagnostico” de super-herói, que Elijah tanto procura firmar em David tem dois obstáculos: uma fraqueza e uma mentira.

A fraqueza confirma a natureza do super-herói, David quase se afogou uma vez, ficou 5 minutos submerso na piscina da escola, mas voltou a vida. David tem medo de água. Água e’ um dos maiores símbolos do inconsciente, e também das emoções. No entanto, a água que coloca David em risco não e’ a dos oceanos, e sim a da piscina. A piscina representa aspectos inconscientes limitados, pois a piscina tem as laterais e a profundidade delimitadas, bem como sua capacidade de armazenar água. Sua profundidade, sendo limitada, permite que se pise ao fundo para tomar impulso par subir ‘a superfície, bem como suas bordas permitem o apoio e a segurança. A piscina, ao conter a água que representaria aspectos do inconsciente, representa aspectos inconscientes ligados ao inconsciente pessoal, familiar e cultural, já que representa o lado mais “domesticado” do inconsciente, não o inconsciente arquetípico propriamente dito.

A mentira, ou segredo de David, está no acidente de carro em que sofreu com a namorada, sua atual esposa, de um casamento em crise. David, um promissor jogador de futebol americano, prestes a fechar um contrato profissional, finge ter se machucado no acidente em que sua namorada poderia ter morrido. O que o impossibilita de jogar e’ o amor e o medo de perde-la. Sua namorada não teria ficado com ele, pois não suportaria viver com a agressividade inerente a um jogo e a um jogador de futebol americano, então ele escolhe ficar com ela, abandonando seu talento, sua carreira, e sua agressividade natural.

Agressividade Criativa

Agressividade faz parte da natureza humana, precisamos lidar com ela, identifica-la, e expressa-la de maneira saudável. Toda defesa implica em agressividade, através da assertividade nos colocamos no mundo, apresentamos nossas ideias e combatemos o mal que nos assola. David não podia ser agressivo, mesmo dentro das regras limitadoras e protegidas de um esporte, este seu lado não poderia ser aceito neste relacionamento, e a negação desta parte importante de sua vida e de sua personalidade acabou transformando-o num ser apático.

A agressividade também e’ necessária nas expressões de alegria, nas expressões esportivas e artísticas, bem como nas relações afetivas e no sexo. Agressividade e’ energia, potencial de ação, o poder destruidor está em como a direcionamos e em que intensidade. David abriu mão de toda a agressividade. Porem restou a capacidade de identificar o potencial agressivo do outro, detectado por Elijah, e que ele exerce em sua função de segurança do estádio. Ele se transforma de um atleta brilhante, que poderia ter sido o grande astro do estádio, em um segurança apático e sem brilho.

Elijah guia David a descobrir seu próprio potencial criativo, seus talentos e capacidades, sempre baseado nos heróis dos quadrinhos. Elijah não conhece a vida real, ele a conhece apenas a partir da perspectiva da narrativa das histórias, como alguém que só conhecesse a vida a partir dos contos de fadas, sem nunca ter experimentado relações de amor e de amizade.

David vai a uma estação central e começa e tentar sentir ali o que havia sentido quando “viu” a arma no bolso do homem no estádio. Ele começa a “sentir” as pessoas, a entrar em suas psiques, como num estado de participação mística, ele detecta um possível agente do mal, e decide checar se estava certo, seguindo-o.

David segue seu instinto, seguindo o malfeitor, e encontra uma família que havia sido refém deste homem. Salva os filhos adolescentes, enquanto os pais dos mesmos já estavam mortos. David luta com este homem com uma forca sobre-humana, mas durante a luta ele e’ jogado pela janela e cai em uma piscina. Temos aqui o resgate do trauma original em que ele quase se afogou na infância, pois os adolescentes que ele havia salvado, agora são seus salvadores. Ele agarra o bastão que os adolescentes lhe oferecem no tumulto da água da piscina, da chuva, do plástico que lhe envolve o corpo, acha a borda, e se salva. Agora ele consegue lidar com seus próprios aspectos inconscientes negados. Sua forca e destreza física não o tornam um herói dos esportes, mas o tornam um herói da vida. Neste momento ele lida não só com os aspectos do inconsciente pessoal, familiar e cultural representados pela piscina, como com os aspectos inconscientes mais arquetípicos, representados pela água da chuva.

No entanto, o processo de David, que implica em seu próprio processo de individuação, do confronto com sua própria sombra, traumas e frustrações, não e’ reciproco em Elijah. Elijah espera que sua redenção se de através da descoberta do talento de David, e concretiza a expressão de seu próprio aspecto sombrio, quando, ao invés de buscar a luz em si próprio, projeta a luz na figura do herói que David representa para ele.

Elijah não e’ capaz de reconhecer e de elaborar sua própria jornada heroica, a de um homem com uma constituição física extremamente frágil, porém com uma capacidade de aprendizado e superação enormes. Ele não reconhece o herói nele mesmo, ele só se vê através do espelhar-se no outro, embora num reflexo sombrio.

Luz e Sombra na Jornada do Heroi

A jornada do herói por vezes e’ sombria, assim como assistimos tantas vezes na história, pessoas que se destacam pela grandiosidade de sua própria sombra, e não pelo self. Por vezes, a sombra arquetípica dita a jornada do herói, ao invés do self, como vemos no caso de grandes criminosos e vilões da história. E’ o que acontece com Elijah. Ele assume seus próprios aspectos sombrios como heroicos, afinal, a sombra também e’ um arquétipo, com todas as implicações numinosas que isto representa.

Elijah não se basta, ele precisa ser o vilão, o antagonista do herói, para existir.

Quase Morrer

Os dois personagens lidam com experiências de quase morte. Elijah luta pela vida o tempo todo, já que sua condição genética o torna tão frágil e susceptível a fraturas, que sua vida esta em risco, praticamente o tempo todo. Fraturas múltiplas podem trazer consequências graves, como infecções e perfurações de órgãos, obrigando-o a levar uma vida cheia de cuidados e de proteção exacerbada. Ele tem consciência da morte, e parece estar obstinado por ela, já que procura alguém que possa vencê-la.

Pôde-se dizer que Elijah passou a vida sofrendo inúmeros traumas, físicos e psíquicos, já que traumas físicos costumam estar acompanhados de traumas psicológicos. Sua vivência de estar sempre à beira da morte não o tornou uma pessoa iluminada, como algumas pessoas gostam de pensar. Pessoas extremamente traumatizadas, quer por questões de saúde física ou emocional, precisam aprender a lidar com esta fragilidade, característica da condição humana. Pessoas que lidam com doenças graves, e sobrevivem uma, duas, ou inúmeras vezes, podem desenvolver a hybris, podem se identificar com o aspecto divino da imortalidade, e atuar a sombra como se esta fosse Self.

Quantas histórias conhecemos de pessoas que quase morreram, e que quando recuperadas, abandonam família, filhos, emprego, passam a levar uma vida leviana, com o argumento de que agora “precisam aproveitar a vida”, desenvolvendo defesas narcisistas implacáveis, arrastando a todos que os amam a grande sofrimento.

Elijah sofre. Sofre muito, mas está desconectado deste seu próprio sofrimento, ele desenvolveu mecanismos de defesa racionais e fantásticos, baseado nas relações entre os personagens dos quadrinhos. Ele esta desconectado do próprio sofrimento, como do outro. Não há empatia. Há uma causa, uma ideia a qual ele persegue obsessivamente: encontrar o herói que justifique sua vilania, ou o herói inquebrantável, que compense sua fragilidade extrema.

David também sofre. Porém ao contrário de Elijah, sua experiência de quase morte tem duas faces, uma pessoal e uma empática. A pessoal relativa ao afogamento sofrido na infância, em que meninos seguram sua cabeça embaixo d’água, na piscina da escola. A empática, ou não pessoal, na experiência de quase perder para a morte a mulher amada, no acidente de carro que o fez desistir de sua carreira de atleta. Ele faz o caminho oposto. Evita situações de risco, tomando consciência de sua própria finitude, tendo medo da água e de afogamento. Ele também mergulha no pântano da empatia, passando a viver a própria vida de acordo com o princípio de não agressividade de sua mulher, negando parte importante de sua natureza, abrindo mão de sua carreira, e de sua própria masculinidade. Ele abre mão da masculinidade assertiva, desenvolve uma suavidade quase depressiva, apática, contemplativa, distante.

Tanto Elijah quanto David tem serias dificuldades de relacionamento.

Enquanto Elijah busca o sentido da vida através do risco potencial do herói em David, David parece conformado com o sentido do sacrifício que fez em nome do amor, sem perceber que este sacrifício afetou a própria relação amorosa que ele tanto desejava. Os relacionamentos afetivos precisam de seres inteiros, e David não está inteiro, a agressividade negada embotou suas emoções e sua capacidade de apreciar e se conectar com a vida.

Este filme desmistifica o poder numinoso da experiência de quase morte, que pode ocorrer, mas não é a regra. A experiência de quase morte de um indivíduo, ou de alguém que este ame, é sempre, de alguma forma, traumática, e complexos e traumas podem ser instaurados ou reativados, necessitando de uma elaboração bem lapidada.

David cumpre sua jornada do herói derrotando o vilão. Ele descobre que Elijah foi o responsável não apenas pelo acidente de trem em que ele sobreviveu, mas também de outros ataques terroristas que praticou, na tentativa de encontrar o herói perfeito para fazer o contraponto da narrativa de sua vida. Elijah e’ preso num manicômio judiciário, e aí talvez as histórias dos três filmes se entrelacem, ganhando, talvez, um sentido maior e mais elaborado.

O desenvolvimento da consciência só pode ocorrer quando conhecemos os opostos de um mesmo símbolo, bem como suas nuances. Elijah parece ter ficado preso aos opostos, me parece que David também. Talvez a conexão entre os três filmes seja exatamente essa: como se relacionam as polaridades de um mesmo símbolo, o bem e o mal, em um indivíduo com distúrbio de dissociação de personalidade múltipla? Em que o bem e o mal são muito mais complicados de se separar quanto o preto do branco, ou a luz da sombra?

Veremos o que nos aguarda em Vidro...

Referências Bibliográficas:

CW 7 Two Essays of Analytical Psychology

CW 8 The Structure and Dynamics of the Psyche

CW 9 Archetypes and the Collective Unconscious

CAMPBELL, Joseph – O Herói de Mil Faces

Texto de Solange Bertolotto Schneider

Todos os direitos reservados

Para ler a análise de Fragmentado, siga o link abaixo:

https://www.solangeschneiderpsicologia.com/single-post/2017/04/10/FRAGMENTADO

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