CASAMENTO ÀS CEGAS[1] – OU SOBRE O AMOR E SUAS FALÁCIAS
O AMOR E SUAS FALÁCIAS
Os Reality Shows são uma febre, desde o primeiro Big Brother, vários formatos de programas em que pessoas comuns tem suas vidas expostas tem sido criados, despertando a audiência, pois a curiosidade humana sobre seus semelhantes sempre existiu. Talvez a grande novidade seja que um número cada vez maior de pessoas esteja disposta a expor sua intimidade, seja por motivos conscientes ou não.
A escolha de participar de um Reality Show pode ter inúmeras razões. Algumas delas podem ser: a busca da fama, e consequente mudança de vida, ganho financeiro ou o início de uma carreira artística, a busca de reconhecimento e aceitação pessoal, ou a simples vontade de experimentar algo novo, de ser desafiado e testar os próprios limites.
Seja quais forem as razões que levam uma pessoa a participar de um programa com esse perfil, o desenrolar dos fatos, os comportamentos e reações da audiência são de certa forma imprevisíveis.
Como já discuti em meu artigo sobre o Big Brother Brasil,[2] a suposta realidade ou espontaneidade de cada participante fica sujeita às edições da produção de cada programa, que pode manipular e editar cada fala e ação, tirando-as do contexto, ou emitindo as possíveis reparações que um comportamento inadequado possa ter recebido durante o programa, elegendo, de maneira sutil, caracteres heroicos e vilanescos, nos moldes das telenovelas em que o enredo se desenrola às voltas dos amores impossíveis, intrigas, vinganças e expectativas frustradas, sempre na busca maniqueísta da vitória do bem sobre o mal, dos bons sobres os maus, como se cada um de nós fosse uma coisa só.
O formato do programa em si é o de um jogo, seja qual tipo de reality for. O clima é de competição, e as regras expostas ao grande público provavelmente não são exatamente às regras aplicadas nos bastidores de cada programa. Assim como na realidade, há regras explícitas e implícitas, e compreendê-las e se movimentar em meio a elas nem sempre é uma tarefa fácil.
Regras explicitas e implícitas do casamento às cegas
A chamada do programa enfatiza que os participantes escolherão seus pares às cegas, ou seja, sem contato visual. Cada participante entrará em uma cabine e conversará com o participante do sexo oposto, e a partir desse contato, criará um ranking de preferencias, até ter sua escolha favorita. Os indivíduos que não encontrarem seu par serão eliminados do programa, como no filme O Lagosta[3], em que todos os solteiros são levados a um hotel onde terão 45 dias para encontrar um parceiro, caso não encontrem ninguém, essas pessoas serão transformadas no animal de sua preferência.
No programa em questão, quem não encontrar seu par, será eliminado e perderá as chances de ser visto e reconhecido pelo público, cujo reconhecimento pode levar a centenas de milhares de seguidores no Instagram, e consequente monetarização de seus posts, contratos publicitários, ou impulsionamento do negócio ou carreira atual de cada participante. Como no filme, quem não encontrar seu par, será punido com o banimento do grupo, ou seja, voltará ao ostracismo do anonimato, simbolizado, no filme, pela perda da humanidade.
Desse modo, podemos fazer uma analogia com o reconhecimento da própria existência e desenvolvimento da autoestima através de ver e ser visto, amar e ser amado. [4]
Embora o programa se autodenomine como a busca do amor às cegas, alguns cuidados foram tomados para garantir, no mínimo, sua audiência. Todos os participantes pertencem a uma certa faixa de idade, todos são adequados aos padrões televisivos de boa apresentação visual, os figurinos são cuidadosamente elaborados para que os participantes estejam suficientemente expostos, com roupas curtas, justas, sensuais, pois o objetivo de seduzir o público, inicialmente, é o mais claro, pois sem público, sem audiência, sem patrocínio, equivale a encerrar a possibilidade de novas edições posteriores.
Após considerarmos algumas questões comerciais, em que nossos participantes já são um produto de consumo, quer sejamos nós, enquanto público, quer sejam eles, enquanto indivíduo, nos tornamos parte de uma engrenagem gigantesca, da qual temos apenas uma pequena parcela de consciência, se é que temos, vamos passar aos aspectos psicológicos da atração que os participantes sentiram uns pelos outros.
O amor é cego, mas os cenários são deslumbrantes
A sedução dos participantes começa pelo cenário. É sabido que participantes desse tipo de programa costumam passar por períodos de confinamento, mais longos ou mais curtos, dependendo de cada programa, e ao saírem do confinamento encontram um cenário deslumbrante, com comida e bebida à vontade, aguçando todos os sentidos, e tornando-os propícios a experiencias agradáveis. É impressionante inclusive a quantidade de bebida consumida (será bebida real ou cenográfica?) pelos participantes, despertando sentimentos dionisíacos, de êxtase e frenesi. Mesmo que a bebida seja cenográfica, a encenação festiva e o encontro com outras pessoas e um ambiente agradável, após o confinamento, a ansiedade e inseguranças que o isolamento social[5] proporciona, são um alívio e podem despertar uma ânsia de viver e aproveitar o momento de uma maneira provavelmente mais intensa do que na realidade.
E isso tudo sem esquecer da idade dos participantes, entre mais ou menos 25 a 35 anos de idade, respeitando a faixa de interesse da maioria dos indivíduos, que acabam escolhendo parceiros com idades mais ou menos próximas das suas.
Após o clima de festa do encontro entre os participantes de cada sexo, em que cada um, inclusive, pode ter avaliado a “concorrência”, sim, porque a rivalidade quando se fala em jogos de sedução pode estar presente, despertando inseguranças, onde a autoestima pode ser afetada ou reforçada, além de fantasias de rejeição ou aceitação, entre outras.
Dito isto, o clima propicio para que os indivíduos entrem de fato no jogo, está criado.
O amor é cego, mas não é surdo, nem burro
Quando um dos nossos sentidos é suprimido, os outros sentidos são exacerbados, assim como a imaginação, as fantasias, e as projeções inconscientes da anima ou do animus, bem como do complexo matriarcal ou patriarcal, tanto negativos como positivos, assim como memorias afetivas de todos os tipos.
O ambiente continua sendo um elemento importantíssimo, despertando experiencias sensoriais e sensuais, através do sofá enorme, aconchegante, em que os participantes parecem ter dificuldades em permanecer na posição sentada, escorregando de forma languida, relaxada, desconstruindo defesas e proporcionando um relaxamento corporal propicio ao despertar de um estado emocional propicio ao interesse pelo outro, pois o ambiente é convidativo a estar acompanhado de uma companhia agradável.
Não é à toa que nas férias, em festas, ou em ambientes em que nos sentimos especiais seja mais fácil o despertar de uma nova paixão, pois quando estamos isentos de problemas e preocupações é que as fantasias de bem-estar e de comunhão agradável com o outro se manifestam melhor. Os romances de férias, os romances de praia que não sobrevivem no asfalto são exemplo disso, da influência do ambiente sobre nossas emoções.
A audição é um dos sentidos mais primitivos, um feto de dezesseis semanas já pode ouvir, com vinte e uma semanas já pode não só ouvir, como identificar a voz e o ritmo do batimento cardíaco da mãe. É o sentido que não desliga nem quando estamos dormindo, além de se conectar com o maior dos nossos cinco órgãos do sentido: a pele. [6]
A voz é capaz de despertar memorias afetivas, denunciar estado emocional e proporcionar repulsa ou atração. A voz, como a música, é capaz de despertar emoções primitivas de bem-estar ou desconforto, e sempre foi considerada uma ferramenta de sedução, vide o fascínio que cantores e compositores despertam através dos séculos.
Podemos dizer que, apesar dos participantes estarem num programa que supostamente elimina a visão como fator de escolha, a visão está presente na observação dos concorrentes, do ambiente coletivo, e especialmente nas cabines, especialmente elaboradas para proporcionar uma experiencia sensorial no mínimo, autoerótica. Além disso, a audição está amplificada com todas as implicações emocionais que pode acarretar.
A seleção através do questionário
Os participantes do programa não podem se ver, mas podem se ouvir e fazer perguntas uns aos outros. E as perguntas, de modo geral, não são nada ingênuas.
Com simples perguntas como: Qual é sua idade? Qual sua profissão? De onde é o seu sotaque? Os participantes já podem delinear um perfil dos seus candidatos.
Durante o primeiro semestre da faculdade de Psicologia, um dos professores nos perguntou (para uma turma de alunos com 18 anos de idade...) se acreditávamos em amor à primeira vista. Parte da turma dizia que sim, parte dizia que não, foi aí que tivemos um choque de realidade.
O professor nos perguntou sobre se já havíamos imaginado nos apaixonar por pessoas das mais variadas profissões e idades, e constatamos que algumas profissões ou idades muito distantes de nossa realidade pessoal nem sequer foram cogitadas. A questão é que a percepção é altamente seletiva. Todos nós temos nossos gostos e preferências, e nossa percepção nos faz enxergar primeiro aquilo que mais nos interessa. Por exemplo, ao entrarmos num mercado, podemos encontrar rapidamente os alimentos de que mais gostamos, e passar direto por prateleiras de produtos que não nos interessam. Ou somos especialmente atraídos por alguma cor, e nem percebemos de que há outras cores do mesmo produto disponíveis, ou seja, nossa percepção faz uma pré-seleção daquilo que vemos, ouvimos e percebemos ao nosso redor.
Ao perguntarem a idade e profissão dos candidatos, é feita uma seleção automática, consciente (como no caso do candidato que desejava encontrar uma mulher nordestina como ele, provavelmente buscando uma identificação cultura) , ou inconsciente (como a candidata que ficou em dúvida por causa da idade, outra por causa da profissão, outra por causa das possíveis diferenças culturais).
O fascínio pelo diferente também influenciou na escolha, numa das fantasias de que os opostos se atraem e se complementam, ou de que os iguais se aceitariam sem preconceitos...
Como pode-se notar, a troca de duas ou três frases é o suficiente para que fantasias, projeções pessoais e culturais interferissem na decisão de cada um dos candidatos, que rejeitavam e aceitavam uns aos outros de maneira contumaz. Às vezes até de forma por demasiado contundente, denunciando que um complexo autônomo carregado de afeto[7] pode ter sido ativado.
Paixão e projeção
A paixão pode ser um ponto de partida para o amor, ou para a decepção. Ao nos apaixonarmos depositamos no outro nossos desejos e fantasias, oriundos de nossa história de vida pessoal, assim como nossos valores familiares e culturais.
Paixão implica em admiração e fascínio, e ambos necessitam estar envoltos em um certo mistério.
O desconhecido fascina e amedronta, e o que amedronta, também fascina.
Admira-se com muito mais facilidade o que não se conhece. Diz o ditado, que a forma mais fácil de admirar alguém, e de continuar a admirar, é à distância. Ao entrarmos em contato direto com o outro o mistério se desfaz, a persona cai e as fragilidades e defeitos vem à tona.
É aí que o mito do amor incondicional precisa ser confrontado.
Ao nos depararmos com a humanidade do outro pelo qual nos apaixonamos, nos decepcionamos. Afinal, a paixão implica numa projeção erótica em qua atribuímos ao outro qualidades divinas, como perfeição, beleza, poder, sabedoria, etc, qualidades que não sobrevivem, pelo menos não durante o tempo todo, durante a convivência diária.
É aí que a fantasia de que somos amados e amamos incondicionalmente cai. A cada demanda e questionamento sobre o porquê e para que fazemos ou deixamos de fazer isso ou aquilo nos sentimos menos amados e aceitos, e o risco de ruptura do relacionamento e o fim da paixão pode ocorrer. Algumas vezes a demanda do outro é realmente absurda, outras vezes nossa resistência em reconhecer nossas falhas é que é.
Esta fase do confronto com a realidade é adiada até o momento que a Lua de Mel paradisíaca acaba, e mesmo assim, nossos participantes ainda recebem uma moradia bastante satisfatória para experimentar a realidade da vida a dois.
Quanto maior a altura, maior a queda. Após estarem expostos a experiencias sensoriais controladas, em que os sentidos do prazer e bem estar são alimentados cuidadosamente, os casais formados são jogados na realidade da vida adulta, em que trabalhar, arrumar, cozinhar, conviver, perderam as características de férias e de ser especial.
Agora estão todos reduzidos a pessoas comuns, os atributos divinos de seres escolhidos, tanto pelo reality, quanto pelos parceiros, é retirado de todos. No filme A Lagosta, a humanidade é retirada como punição, nesse programa, o aspecto arquetípico divino de Eros e Dioniso precisam ser alimentados por eles próprios, não mais pela esmerosa equipe de produção do show. Não podemos nos esquecer de que o sonho da Gata Borralheira é ser princesa, o do plebeu, ser príncipe. Em nosso show, os príncipes e princesas voltam a ser gatas borralheiras e plebeus, alguns até parecem terem virado sapos.
Como todo relacionamento, fantasias são confrontadas com a realidade. A persona profissional se sobrepõe à do amante, trazendo frustração, insegurança e sentimentos de rejeição. Homens divertidos e brincalhões ficam sérios, as vezes mal-humorados, trazidos de volta à realidade do mundo corporativo, muito da leveza se esvai, contaminado um relacionamento iniciado numa espécie de paraíso artificial.
Como se não bastassem as dificuldades naturais de cada relacionamento, nossos personagens são editados pela produção, e julgados pela audiência, que interfere e questiona cada fala, cada reação, cada escolha.
Cada palavra gravada no show adquire um peso desproporcional ao que talvez adquirisse se dita em particular, bem como as reações causadas em cada situação. Ao certo não sabemos o que de fato aconteceu na intimidade de cada casal, assim como não sabemos na realidade. Todo relacionamento é feito de nuances, que escapam aos olhos até mesmo de observadores mais atentos, e julgamentos pusilânimes podem ser tirados de uma única frase, de um único olhar, ou ausência de.
Aos poucos o show vai ganhando características das telenovelas, em que heróis, vilões, mocinhas e mocinhos vão atraindo a opinião do público, e quem sabe alterando o roteiro das edições.
Janete Clair, uma famosa dramaturga brasileira dizia que, se a audiência cair, é só colocar a mocinha para sofrer nas mãos de algum vilão e pronto, a audiência retorna. Isto sempre foi verdade, mas nos tempos atuais, muitas vezes os vilões se sobrepõem e viram atração principal.
Atualmente, o vilão mais cruel pode ser o próprio editor de imagens, ou o próprio público, que cancela indivíduos com a mesma velocidade que os coloca em pedestais.
A persona do conquistador/conquistadora como defesa contra o amor
Ao pensarmos nos tipos de persona que seriam escolhidas para serem representadas ou assumidas durante um programa que enfatiza o as fantasias do amor romântico, do amor além das aparências, que enxerga com os olhos da alma, como sinônimo do amor incondicional, precisamos considerar algumas questões culturais da atualidade.
Numa época em que as redes sociais enfatizam a forma ao invés do conteúdo, a persona do herói ou heroína românticos tem sido desconstruídas e substituídas pelos heróis narcisistas, protagonistas de conquistas e seduções em que o outro é objetificado e descartável, podendo ser substituído por um igual ou equivalente a qualquer momento.
No trabalho clínico me deparo com o conflito entre quem se quer e quem se ama com o quem se gostaria que fosse visto ao nosso lado. O exibicionismo das redes sociais saiu do âmbito da exibição do próprio individuo e contaminou a relação afetiva de inúmeros casais.
Afinal, meu parceiro é Instagramável? Perco ou ganho curtidas se for vista em publico com esta pessoa? Não basta ser um casal compatível, é necessário obter a aprovação pública.
Claro que isso sempre existiu. Os padrões de exigência para a escolha de companheiros sempre obedeceu a normas sociais, e neste sentido, nada mudou.
Preconceitos que classificavam uma mulher como mulher para casar e mulher para se divertir continuam a habitar o imaginário, inclusive daqueles que se julgam mais descolados e mente aberta.
Neste sentido, compara-se o preconceito em relação ao homem que é um homem para constituir família e o que é um homem para apenas se divertir. Sim, porque o comportamento das mulheres também se transformou, e a liberdade de escolha e independência profissional, pelo menos hipoteticamente, aboliram estes preconceitos.
No entanto, observa-se nas candidatas a preocupação com a profissão dos candidatos, o que implica não apenas nas noções de status social e financeiro, pois no imaginário, tanto feminino, quanto masculino, o homem para casar precisa ser provedor, ou seja, economicamente estável, e a mulher para casar precisa ser séria, ou seja, ter tido uma vida sexual discreta que não faça o homem se sentir diminuído ou inseguro em relação não apenas à sua masculinidade, como à sua performance sexual.
Até que ponto a exigência de que a companheira não fume e não beba está relacionada a padrões de vida saudável ou a padrões de conduta de mulheres dignas de adquirirem o status de mulher casada.
Por outro lado, desapegar do status de garanhão também não é fácil pra muitos homens, pois o conquistador costuma ser admirado, e invejado por seus supostos concorrentes, e neste caso, se apaixonar e assumir um relacionamento estável implica em perda desse status, ainda que fictício.
Ser um conquistador ainda dá mais curtidas do que ter um relacionamento afetivo estável e satisfatório. Ou pelo menos, há quem acredite que sim.
Já acompanhei vários pacientes que mantinham uma persona de mulher fatal e que eram esposas fiéis e amáveis, tanto quanto homens que esbravejavam conquistas e eram maridos adoráveis dentro de casa. O oposto também se encontra com frequência, em que as personas sociais não se adequam à realidade.
Esse mini-universo, representado por esse show, consegue apresentar inúmeras nuances dos mais variados tipos de relacionamento afetivo, em que os jogos de conquista, sedução, de manipulação, tão frequentes nas relações amorosas, são representados com tanta vivacidade.
O dito e o não dito – ou o que é dito atrás ou na frente das câmeras
Uma das queixas de alguns participantes é sobre o que acontece na frente ou atrás das câmeras, ou seja, o que é exposto pela persona e o que fica na sombra.
Manter uma persona pública adequada é o desejo da maioria de nós, e imagino que esta preocupação seja ainda maior quando se está sendo filmado para um programa de alcance inimaginável de público.
Todos nós precisamos de privacidade, e quando nos sentimos muito expostos podemos ficar estressados, ansiosos, agressivos ou depressivos, descarregando o excesso de emoções quando nos sentimos protegidos de uma exposição excessiva.
É sabido que crianças fazem mais birra e choram mais quando estão aos cuidados das próprias mães do que de estranhos, pois sentem-se mais confortáveis para extravasar emoções e sentimentos que poderiam, além de não serem compreendidas, serem reprimidas, combatidas ou punidas por outras pessoas.
Em situações de stress, como às que os participantes do show são expostos constantemente, a tendencia é de que comportamentos regressivos se manifestem, mas não há uma figura acolhedora e compreensiva por perto, pois todos estão vivenciando as mesmas coisas, sem capacidade de distanciamento do problema em questão, sem contar o stress agravado pela própria característica proposta pelo programa, que é de encontrar a sua alma gêmea, o que por si só já pode despertar traumas e conflitos pessoais, familiares e culturais em todos os participantes.
Falar uma coisa e fazer outra implica em conflito interno, ao que todos os participantes parecem estar incluídos, de uma forma ou outra, em maior ou menor intensidade, afinal, as circunstâncias são de fato extremamente carregadas de emoção.
Estas condições podem muito facilmente levar a conclusões precipitadas de houve relacionamento abusivo entre casais, onde a questão de ser bonzinho em publico e agressivo em privado é tão comum. Quase todos nós nos enquadramos nesta descrição em algum momento de nossas vidas.
Também é muito fácil e rápido classificar alguém de superficial, leviano ou imaturo, pois também não sabemos da capacidade de cada um de manter uma persona pública mais estável ou não. Casais fazem isso o tempo todo, polarizam a persona social enquanto muitas vezes mantem um relacionamento afetivo muito mais complexo na vida privada.
Por fim, não bastassem as fantasias e projeções que os participantes tem que lidar durante a convivência durante e após o programa, ainda tem que lidar com as fantasias e projeções despertadas no publico em geral,cujas fantasias de amor romântico e incondicional, somadas aos traumas afetivos e rejeições amorosas sofridas ao longo da vida podem interferir na visão de mundo e julgamento positivo ou negativo de cada participante.
A literatura e o cinema trazem vários exemplos de casais formados de maneiras inusitadas. No filme Intocáveis, o personagem de Philippe se apaixona por uma mulher após ambos trocarem cartas romanticas, cheias de poesia, e perfumadas...e o relacionamento através de cartas resulta em um relacionamento amoroso, com dois filhos.
Conheço vários casais formados através de conversas no Twitter, Tinder, Facebook, e outros sites de relacionamento. Conheço casais formados após encontros arranjados por amigos, casais que se apaixonatam à primeira vista, casais de namorados da juventude que se reencontraram após dezenas de anos e viveram um grande amor. Enfim, por que não encontrar um amor e um relacionamento afetivo satisfatório num Reality Show?
O amor sempre surpreende, pelos encontros, pelas despedidas, pela forma criativa com que invade a vida das pessoas, algumas vezes delicamente, outras vezes como um furacão. Julgar um relacionamento pela forma que um casal se conhece é preconceituoso. Há relacionamentos que se iniciam de maneira socialmente aceitável e não dão certos. Outros começam de maneira torta e se mostram sinceros e verdadeiros. O mundo mudou, a forma de conhecer pessoas mudou, considero natural que a maneira que os relacionamentos se inciem também mude.
Quem somos nós para julgar?
Ao observar um ser humano, não tenho dúvidas de que a complexidade de cada um é muito maior do que um programa pode exibir, e de que as circunstâncias a que somos expostos interferem diretamente em nossa maneira de agir e de nos expor.
Como diz um antigo proverbio, para conhecer uma pessoa, é preciso comermos juntos uma saca de sal. E às vezes nem isso basta!
Spoiler de livro – várias das questões tratadas aqui serão abordadas em meu próximo livro, O Feminino e o Masculino, a ser lançado pela Editora Appris em poucas semanas.
Me aguardem!
Obs. As referencias bibliográficas deste texto são as mesmas dos artigos referidos abaixo, fique à vontade para consultá-las no site.
[1] Casamento às Cegas Brasil https://www.youtube.com/watch?v=FiHAXHF8DN4 [2] As reflexões sobre o BBB estão descritas neste artigo, em meu site. https://www.solangeschneider.com/realityshow-mundovirtual-vidareal [3] The Lobster https://www.youtube.com/watch?v=poWNZFgOtdk [4] Para maiores detalhes, veja meu artigo sobre a sombra e a persona na internet https://www.solangeschneider.com/sombra-e-persona- [5] Para maiores reflexões sobre o isolamento social, veja meu artigo sobre o isolamento social na pandemia. https://www.solangeschneider.com/post/a-sociedade-man%C3%ADaco-depressiva-na-pandemia-do-covid-19 [6] A Verdade no processo analítico, página 41 para ler uma amostra do livro, siga o link: https://www.academia.edu/40879587/Schneider_A_verdade_no_processo_anal%C3%ADtico_amostra_12806_
Ou para comprar o livro na Amazon:
A Verdade no processo analitico https://www.amazon.com.br/dp/8595470820/ref=cm_sw_r_awdo_navT_g_QHHMSEDG86V10RAJS7W2
[7] O conceito de complexo autônomo carregado de afeto é discutido em meu artigo Você tem pavio curto? https://www.solangeschneider.com/post/voce-tem-pavio-curto
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